terça-feira, 3 de janeiro de 2017



Não voam pássaros no céu de Ettersberg

 memória exemplar em A Longa Viagem, de Jorge Semprun



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                                               Si je retrouve ceci, c’est parce que
                                                                       je cherche la région cruciale de l’âme
                                                                       où le Mal absolu s’oppose à la fraternité.

                                                                                                          André Malraux






               Tempo de silêncio
           
            A experiência de Jorge Semprun, no campo de concentração de Buchenwald, só muito tarde venceu a barreira traumática que o acompanhou durante 15 anos. Foi preciso um longo período de luto e de luta interior, uma maturação, fragmentada persistentemente pela abertura de uma chaga absurda e incontrolável, resistente ao acto de verbalização.
            No dia de retorno a França, após a libertação do campo, alguns sobreviventes conversam sobre a forma de passar o testemunho do que viveram e viram: que metáfora, que palavra, que imagem, que gesto traduziriam um universo aproximado do espaço concentracionário, minuciosamente estruturado para o aniquilamento físico e moral dos prisioneiros.  Que linguagem utilizar, como reagir perante um olhar contristado ou incrédulo, sem cair na incomunicabilidade e na aporia da representação, prisioneira da afasia de uma anti-memória do invivível. De que modo narrar a morte que se atravessou, mas à qual não se sucumbiu.
            Antes optar pelo mutismo do que enveredar pelo esgotamento verbal, pela euforia do desabafo, pela via da compaixão. Jorge Semprun optou pela vida, como declara em L’écriture ou la vie, publicado em 1994:

Il est vrai qu’ en 1947 j’avais abandonné le projet d’écrire. J’étais devenu un autre, pour rester en vie.” (p. 204).
“Je suis devenu un autre, pour pouvoir rester moi-même. (…) Rares auront été les fois où le soudain souvenir de Buchenwald aura perturbé ma tranquillité d’esprit, rudement conquise: maîtrise provisoire, sans cesse renouvelée, de la part de ténèbre qui m’était échue en partage. (p. 236).

            Num registo discreto e contido, o autor não consegue de todo esbater o longo e doloroso processo de superação do trauma que, de algum modo, continuará indelevelmente colado à sua identidade.
            Este livro é fundamental, não só para a compreensão, em profundidade, de A Longa Viagem, mas também para entender e compartilhar um percurso pessoal exemplarmente ético e solidário, enquanto deportado, escritor e militante de esquerda. Trata-se de um cahier de bord complexo, resistente às rotinas da linearidade e do utilitarismo que, vulgarmente, conformam este tipo de escrito, já que o registo temporal é desestruturado, simultaneamente, pelos mecanismos psíquicos que regulam a memória, pelos afloramentos do trauma e pela gramática ficcional.      
            Coloca-se, a este propósito, a aparente contradição do pensamento de Jorge Semprun que, de algum modo, vem sustentar a impossibilidade do testemunho, em contra-corrente com o carácter autobiográfico de grande parte da sua obra. A autobiografia, em termos epistemológicos, implica um relato presencial, mesmo que mediatizado pelo carácter ficcional que este subgénero literário comporta; porém, o género autobiográfico cria sentido e relevo, através da narrativa. Aliás, a alteração do narrador em A Longa Viagem, no momento em que chega a Buchenwald, procurando iludir o leitor e iludir-se, num processo de distanciação brechtiana, reforça e sublinha o carácter testemunhal do livro, a que não escapa também L’écriture ou la vie, através, sobretudo, das amiúdes referências às leituras, aos seus escritores preferidos e à recordação sentida dos amigos que lhe morreram nos braços, em Buchenwald. Se se pode acolher a premissa, segundo a qual os testemunhos do Holocausto carecem de autenticidade, no sentido em que o extremo da violência perpetrada pelos nazis apagou a testemunha, permanece, todavia, a voz dos que testemunharam e viveram o horror do extermínio programado dos campos de concentração.  
            A autenticidade e a fiabilidade do testemunho dos sobreviventes, não obstante os obstáculos de natureza psíquica – quer se devam ao trauma e à sua complexidade, quer a selecções automáticas da memória - que se erguem em torno da testemunha, adquirem carácter documental, mesmo que mediados pela criação artística.


              Depois do esquecimento, a voz da linguagem

            Em A Longa Viagem, livro publicado em França em 1963 e iniciado dois anos antes, Jorge Semprun refaz a viagem a que fora forçado, pelos nazis, na sequência da sua captura em Joigny, em 1943, numa emboscada conduzida pela tropa ocupante. Trata-se de uma viagem que a narrativa vai entretecendo com outras narrativas que baralham o tempo e o espaço, num desespero útil para vencer a memória intransitiva, ou antes, para dar sentido humano e histórico, em suma, testemunhal, a uma viagem iníqua. Os expedientes ficcionais, as anisocronias narrativas, as interrupções discursivas, a intromissão sistemática     do imaginário, o registo múltiplo das vozes da enunciação visam um só objectivo, a saber a presença de uma recordação traumática que, através da função mediadora da linguagem literária pode ser atenuada:

  Mas por ora, é apenas a hora perturbada das recordações. Sobem à garganta, sufocam, amolecem a vontade. Eu corro com as recordações. (…) Tenho vinte anos, posso correr da minha vida montes de coisas. Dentro de quinze anos, quando descrever esta viagem, já não será possível. Pelo menos assim o suponho. As coisas não terão apenas um peso na tua vida, terão um peso em si mesmas. Dentro de quinze anos, as recordações serão menos ligeiras. O peso da tua vida será, talvez, qualquer coisa de irremediável. (pp. 33-34).

            Jorge Semprun teria tido a percepção aguda da impossibilidade de falar, no campo de repatriamento, em Longuyon, num desabafo momentâneo, mas que haveria de transformar-se numa bandeira de contenção, de pudor e de respeito para com os que ficaram: “Ao ouvir aquelas perguntas [perguntas estúpidas], tomei bruscamente uma decisão. É preciso dizer que essa decisão já amadurecia em mim há tempos.” (s. d.: 136): tomara a decisão de calar, para poder salvar-se. O autor recusara o percurso da literalidade, da tentativa de busca da verdade, contra a omissão ou o esquecimento que caracterizam os sintomas do trauma, como refere Cathy Caruth: “It is this literarity and its insistent return wich thus constitutes trauma (…) (1995: 194). Este mecanismo psíquico inviabiliza a representação simbólica dos factos vividos e persegue a vítima através de sonhos ou de outras perturbações, levando-a a manifestações patológicas. Por outro lado, a tradução de acontecimentos traumáticos impõe, quer da parte da vítima, quer do interlocutor, um conjunto de condições, nem sempre satisfatoriamente realizáveis.
            A narração de uma memória traumática, em situação de testemunho presencial ou diferido, necessita de que a vítima assuma a posição de sujeito e que dela faça parte integrante um interlocutor aberto[1] à escuta (cf. Ribeiro, 2010). Primo Levi optou pela escrita imediatamente após a libertação, acautelando os efeitos do esquecimento sobre a memória. A publicação do seu primeiro livro dedicado ao extermínio nazi, Se isto é um homem, foi recebida com enorme indiferença; não havia ouvintes interessados em remoer uma catástrofe que, por vergonha, por medo, ou por ligeireza, teria de ser rapidamente sepultada. Parecia que o Tribunal de Nuremberga tinha resolvido a questão criminal que envolvia os mais directos representantes do regime nazi. Os carrascos foram punidos, com fundamento em abundante documentação: “At Nuremberg, the americain prosecutor Robert H. Jackson has based the case on  reams of documents (Wieviorka, 2006: 389) Os sobreviventes foram ignorados: “But Nuremberg failed to reach the heart of men.” (supra: 390).  
             Em L’écriture ou la vie, Semprun reconstrói o diálogo com os companheiros de regresso, após a libertação. Está em debate a transmissão do testemunho, os procedimentos linguísticos e a selecção das terríveis experiências de vida (e de morte) em Buchenwald e noutros campos de concentração. O discurso choca permanentemente com a ausência de palavras, com a falta de uma linguagem suficientemente eficaz, com significantes vazios, em suma, com a intransitividade discursiva. Alguém, subitamente, conclui: “Le vrai problème n’est pas raconter, quelles qu’en soient les difficultés. C’est d’écouter… Voudra-t-on écouter nos histoires, même si elles sont bien racontées?” (p. 134). De facto, os sobreviventes do extermínio nazi, ou de outra catástrofe de que tenham sido vítimas, silenciam os horrores sofridos devido à ausência de um ouvido hospitaleiro. Interrogado sobre a forma como a sua experiência em Auschwitz era abordada com os filhos, Primo Levi confessa a ausência de curiosidade por parte deles (Levi, 2010: 47); muitos testemunhos permaneceram silenciados pela falta de interlocutor: “To tell one’s life story is a satisfaction refused only with difficulty. It is the proof that one has in truth existed and that an interlocutor is there, ready to take an interest on you.”(Gaussen, apud  Wierorka, 2006: 391).
            Parafraseando Paul Ricœur, após o esquecimento criativo e libertador, em A Longa Viagem, Jorge Semprun intima o ouvinte/leitor-hospitaleiro a fazer um exercício de anamnese, de regresso às memórias e aos testemunhos do rapaz de Semur, de Gérard, de Hans, de Michel, das crianças judias, de Bloch, das cento e dezanove “bocas anónimas” que, na quarta noite de viagem, gritavam por água, naquele «wagon plombé», enquanto a morte rondava e o inferno se aproximava, insidioso. São, como o narrador, «personagens-símbolos» da experiência traumática, agora finalmente verbalizada, e condensadores éticos do testemunho de uma usurpação da vida, programada e calculada por um sistema funesto e cientificamente estruturado.
            O autor procura exercitar um trabalho de memória em si, cujo destinatário é o futuro: “O que está em jogo não é o “resgate” de uma memória, mas a consciência de uma perda irreversível” (Danzinger, 2004:4). Não  se postula o sentido que Michael Pollack (1992: 7) atribui à expressão ‘memória em si’, trabalhada para apropriação e identificação doutrinária com um determinado acontecimento para fins propagandísticos; bem pelo contrário, o objectivo é o de acautelar precisamente novas perdas irreversíveis, pelo esquecimento ou pelo exacerbamento intransitivo do âmbito a que, por vezes, a tolerância é estendida. Está, pois, arredado do propósito de Semprun o cultivo da melancolia, ou da reconstituição intransitivas de factos ocorridos no passado que, muitas vezes contaminam a memória, seja colectiva, seja individual. À dimensão melancólica, contrapõe o escritor um estatuto de convivência com o trauma que desperta para a ética e para a responsabilidade (cf. Danzinger, 2004: 6).
            A memória literal, aquela que cristalizou num momento do passado, e em nome da qual se invectivam presentes e futuros, não molda a narrativa de Semprun. Para lá das representações que actualizam e verbalizam o drama trágico do nazismo, o autor reflecte amiúde sobre a natureza humana, sobre as condições sociais e históricas que enquadraram os factos, sobre a violência, o poder, a morte e problematiza, à luz de uma consciência multifacetada e despojada de preconceitos ou de juízos metafísicos, a condição humana, em toda a sua dimensão.  O testemunho de Jorge Semprun consubstancia o dever de memória para com os milhares de vítimas do nazismo, e para com as gerações actuais e vindouras, em sentido inverso ao do perdão, ao da tolerância do intolerável, porque anti-humano.          


               Reviver o invivível

            A narrativa estrutura-se em torno de quatro marcos temporais, redimensionando, pelos tempos ficcionais, passado, presente e futuro, as quatro noites passadas no comboio destinado a Buchenwald, num vagão onde se amontoam cento e dezanove seres humanos. Em cada parcela de tempo, condensa-se, linearmente, a ideologia da desumanização: a humilhação, a dor, o desespero, a solidariedade, a agonia e a morte: “Suportar a desproporção entre a imaginação e o facto. Eu sofro” (Klϋger, apud Seligmann-Silva, 2003)[2] . Receando ser vítima de um pesadelo inominável, o narrador convoca, logo nas primeiras frases, os dedos das mãos para contar o decurso daqueles dias longos. É então que, em cada dia e em cada noite, o real e o imaginário se encontram, num turbilhão de vozes, de vidas, de histórias, de história. O tempo e o espaço refractam-se, expandem-se, as vozes ecoam ou chegam em surdina, as memórias da memória fundem-se, num casulo de sobrevivência.
            Os procedimentos de desarticulação narrativa, pela integração de analepses e  de prolepses, levam o autor a um estádio de distanciamento e de lucidez que, de algum modo, lhe permite o acesso à verdade dos acontecimentos, esbatendo-lhes o excesso de fardo emocional que correria o risco de ser transformado em piedade, por parte do leitor ou do ouvinte e, para cujos perigos Boltansky, em La Souffrance à Distance, nos alerta. De facto, obra A Longa Viagem tem um propósito eminentemente pedagógico, foi, consciente e pensadamente, escrito com a intenção de acentuar a responsabilidade humana do dever de intervir e deliberar, perante momentos de violência extrema.
            Numa leitura textual, as «personagens-símbolos» referidos acima constituem, por metonímia, exemplos do inenarrável e do invivível, projectados metaforicamente pelo imaginário numa literatura comprometida com o ‘real’ que “aqui deve ser compreendido com a chave freudiana do trauma de um evento que justamente resiste à representação.” (Seligmann-Silva, 2003), e com os contributos, posteriormente fornecidos por análise e investigação a partir de outras catástrofes, que permitiram dilucidar os mecanismos recorrentes do trauma  - os movimentos de recuo e de surgimento, na busca imperiosa da verdade - resultantes da conclusão, segundo a qual, no momento da catástrofe, a vítima não está plenamente consciente. (cf. Caruth, 1995:195).
            A fragmentação narrativa, os cortes discursivos abruptos e aparentemente descoordenados, a mudança de registo enunciativo, o arrastamento descritivo, a minúcia do detalhe, não só reflectem as condições psíquicas de emergência do trauma (ou as condições de co-habitação com o trauma), como procuram simular a linguagem gestual, os silêncios, a «gaguez» do testemunho oral. Estes recursos discursivos - os silêncios ou o excesso[3] - acentuam o carácter documental do texto literário, que é capaz de criar a representação do que já não está presente e coloca a verdade na própria representação. (cf. Ricœur: 2002).
Percorrendo as personagens, detectando-lhes o pulsar, em permanente diálogo, num registo hermenêutico permeável às anisocronias, à refracção da temporalidade, aos segmentos discursivos problematizadores, autor e leitor transformam-se em actores de mudança, empenhados que estão em não permitir que a história se repita.


             O rapaz de Semur

            Personagem de ficção, como confessa em L’Écriture ou la vie, o rapaz de Semur é a representação simbólica de todos os jovens trucidados pela máquina implacável. É a imagem do patriota lutando como pode pela libertação do seu povo, do irmão ocasional, generoso e prático, de um alter ego não organicamente enquadrado por redes e organizações militantes. O rapaz de Semur é o paradigma do «soldado desconhecido», do anónimo, do herói das celebrações pomposas e calendarizadas, da história e da memória colectiva, indefinidas, sem relevo, nem nervo que, num retrato singular e único, a narrativa resgata e eleva à dignidade de «ser-em-si» e «ser-com-os-outros». Sendo uma personagem de ficção, o rapaz escapa dos contornos de uma «personagem de papel», que resultaria de um processo de autoficcionamento textual.
            Numa crítica ao livro A Longa Viagem, Jean Paulhan demora-se na análise da personagem, reduzindo-a à invenção[4] de um companheiro de viagem, com quem Jorge Semprun entabula “des conversations…excellentes» (apud Semprun, 1994: 270-271), revelando uma inopinada superficialidade de análise das forças em jogo numa obra de carácter testemunhal. Semprun comenta a apreciação de Paulhan, com urbanidade, mas não sem uma centelha de ironia: “J’ai inventé le gars de  Semur, j’ai inventé nos conversations: la réalité a souvent besoin d’invention, pour devenir vraie.”  A necessidade  absoluta da personagem, por outro lado, avoca com mestria a natureza humana solidária do narrador, um traço identitário da humanitude oposta ao exercício de um poder discricionário, totalitário e bárbaro. O rapaz de Semur vai-se esvaindo naquele definitivo «huis-clos» sepulcral, acompanhando a debilidade colectiva, a desumanização programada. Poderia ter sido René Hortieux, um dos irmãos Hortieux, que morreu como um homem, fuzilado, após tortura, de forma íntegra; aquela morte exemplar, é lançada, num assomo de desesperado orgulho, ao rosto dos assassinos. (s.d.:64).
            O rapaz de Semur é o espelho da vida anterior que se vai tornando cada vez mais longínqua e surreal, resguardada, por memórias avulsas, dos odores fétidos, dos gritos desesperados e da insídia da morte. Dele, sobreviverá Gérard. Anos mais tarde, o actor que recriou a personagem do rapaz de Semur, num filme de Jean Prat, terá dito: “J’aurais aimé vous avoir vraiment tenu compagnie, pendant le voyage”. Jorge Semprun considera: “Mais la fraternité n’est pas seulement une donnée du réel. Elle est aussi, un besoin de l’âme: un continent à découvrir, à inventer. Une fiction pertinente et chaleureuse.” (1994: 271).
            O rapaz de Semur morre em silêncio, no final da quarta noite, ou antes, vai morrendo ao longo dessa noite de pesadelo absoluto, nos braços do narrador. As forças vão-lhe fugindo, nas últimas horas, ao mesmo ritmo do agravamento das dores nas pernas do companheiro: “Não me deixes, companheiro”. Separar-se-ão no momento da chegada a Buchenwald. Do rapaz de Semur, numa alquimia de morte, reaparece Gérard, o prisioneiro atento e solidário, do campo de concentração de Compiègne, que há-de conviver longos meses ombro a ombro com a morte mais terrível e obscena. Semprun dirá mais tarde, lembrando palavras de Kant, que não viveu a própria morte, mas atravessou-a.


             Hans e Bloch

           Em torno destas duas personagens concentram-se se dois sentidos opostos de vida, dois modelos de exercício e de recusa da cidadania, duas formas de encarar o mundo em toda a sua complexidade. Hans, personagem de ficção, e Bloch, companheiro de estudos de Semprun, antes da sua deportação, traduz duas visões distintas sobre o significado do genocídio perpetrado pelo regime nazi. Perante a visão finalística da condição humana, cuja essência reside na redenção sacrificial da culpa original, sustentada por René Girard, a propósito da violência, Hans, judeu de origem um pouco confusa, materializa, de forma deliberada, a concepção kantiana, segundo a qual, o homem é senhor do seu próprio destino.
            Personagem dotada de um recorte fluido e evanescente, Hans rejeita o fatum e luta para fazer a sua própria história. Pode dizer-se que Hans consubstancia o perfil trágico do anti-herói, no sentido em que, por um lado, se esfuma no vento, numa morte conscientemente escolhida, anónima e, por outro, nas circunstâncias históricas em que viveu, rejeita o clímax redentor pelo sacrifício, já que esteve do lado dos vencidos. Hans simboliza o judeu que Semprun gostaria de também ter sido, o judeu liberto do peso de uma culpa primigénia, metafisicamente enredada e aporeticamente libertadora, que há-de esmagar milhares de Bloch, sombras de um coro de tragédia consumido pelo fogo redentor.
            Num trabalho de pesquisa, Michael Pollak consegue entrevistar uma sobrevivente do genocídio que relata a sua vida antes e depois de ter sido deportada. Casada com um médico judeu, ambos perfeitamente integrados no meio social alemão, encaravam os preceitos religiosos e culturais judaicos de modo distinto. Quando as deportações se intensificaram, o espírito laico da mulher confrontou-se com o peso das práticas mais fechadas e conservadoras do marido, pugna de que saiu derrotada: «Pour mon mari, j'avais la possibilité
d'acheter un papier officiel de la Croix-Rouge avec photo. Avec cela, il aurait assez bien pu se débrouiller. Mais à son avis, il ne fallait pas se dresser contre le Destin». (Pollack: 1986). O testemunho de Ruth A. confirma, de forma transparente, a projecção verosímil das personagens de ficção forjadas por Semprun e traz à colação conflitos que irromperam sobre o carácter testemunhal da literatura, a partir da segunda metade do século passado. Num artigo publicado em 2002, em Tr@nsite online, Paul Ricœur debruça-se sobre as conexões entre história e memória, na perspectiva de representação do passado. Declara, a dado passo:

 (…) l’assignation à quelqu’un de l’acte de se souvenir ne se referme pas sur cette auto-désignation du titulaire du souvenir en première personne. Par sympathie, transfert dans un autre psychisme, nous sommes habilités, sur la base de la parole d’autrui, et d’autres signes que verbaux, à attribuer la mémoire à d’autres que nous-même. Cette attribution multiple rend possible le récit des souvenirs d’autres que nous, comme dans le roman, le théâtre.


              Michel          

            Michel, por contraposição ao rapaz de Semur, é o «déclencheur» de uma memória que mergulha as suas raízes nas profundezas e na dimensão política do combatente comprometido com a luta pela libertação dos povos, de matriz internacionalista, contra a guerra e contra o sistema capitalista que a origina. Personagem especular de Semprun exilado da sua pátria, «maquisard» por imperativo de consciência, Michel corporiza o combatente clandestino, o «saboteur» da engrenagem totalitária, o resistente à tortura e ao sofrimento infligidos pelos sequazes nazis. No campo de concentração, a expensas da própria vida, organiza redes clandestinas de sobrevivência dos companheiros, ampara os mais frágeis, giza estratégias de combate e de sabotagem. É a voz conspirativa nas latrinas, espaço de liberdade em Buchenwald (cf. 1994: 49).
            É ainda o companheiro de viagem que, na longa avenida de acesso ao campo de concentração, partilha com Gérard o ombro salvador contra a morte iminente, perante a ferocidade dos S.S. e dos cães que lhes mordem as canelas. Mais tarde, após a libertação, acompanhá-lo-á à aldeia alemã, próxima do campo, onde a vida se desenrolou, tranquila, paredes-meias com um campo de morte. Havia que saciar uma sede antiga de anos. Mas não compreenderá o mutismo de Gérard, o olhar distante e perplexo, perante o ruidoso silêncio que cobre as casas e as ruas:

  Olhamos à nossa roda, arrastamos as botas pelo pavimento da praça. A mim próprio pergunto se a povoação terá medo, se os camponeses nos temem. Há anos que trabalham na lavoura com os edifícios do campo de concentração diante dos olhos. Ao domingo víamo-los passar pela estrada, com as mulheres e os filhos. (…) Para nós, eram homens que passeavam com a família depois de uma semana de trabalho duro (…). Mas de nós, que visão teriam eles de nós? (s.d.: 158).

            Esta reflexão coloca, por um lado, o problema central das condições históricas da emergência e da sustentação do fascismo, menos de duas décadas após o fim da 1ª Guerra Mundial, com todo o seu rosário de horrores, e, por outro, interroga-nos sobre a sua aceitação, tácita ou explícita, por parte de um segmento importante da população europeia. A redução do nazismo a um epifenómeno dramático da história da humanidade, como uma assunção excepcional do mal absoluto, apodando-o de barbarismo, primitivismo, ou caso desviante (Hϋppauf, 1997: 4-seg.) constituíram, na modernidade, argumentação abundante para vozes que encaravam a violência ou, como condição intrínseca ao próprio ser humano ou como resultado fortuito de grandes tensões sociais, em determinados contextos históricos.
            As condições históricas e económicas decorrentes da derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial catapultaram a emergência de um populismo salvador, protagonizado por Hitler. O país definhava financeiramente, largas faixas da população padeciam de uma miséria pertinaz, o descontentamento grassava, enquanto uma burguesia voraz pugnava por medidas drásticas que cerceassem a pujança política do proletariado. Acompanhados por uma doutrina antiga, de teor marcadamente racista, estavam criadas as condições para visar o elo mais vulnerável, porque minoritário e mais estranho culturalmente, mas poderoso economicamente, da sociedade alemã: os judeus. O aparelho ideológico, o aparato bélico, a política do espectáculo constituíram o derradeiro impulso para a catástrofe da iniquidade.
            Na viagem para Buchenwald, na paragem do comboio numa estação alemã, o olhar de alguns deportados presencia, assombrado, algumas manifestações de ódio que lhes são dirigidas por uns quantos alemães que ali se encontram. Por isso, a necessidade de tentar saber de que modo aqueles camponeses alemães olhavam para os recém-libertados, homens como eles, porque desse modo os entendiam. O período de luto e de maturação manifestaram-se essenciais à concepção de uma memória historicamente útil.





         As crianças judias

            O destino trágico das crianças sobreviventes de um comboio superlotado de judeus proveniente de Auschwitz, em condições de extrema dureza, no momento em que os aliados e as tropas soviéticas fustigam duramente as tropas alemãs no seu território, constitui o mais ingente tributo à memória de todas as crianças que pereceram nos campos de concentração. Resistentes ao frio e à fome, o grupo de crianças surge como uma perturbação das rotinas; os S,S, não contavam com aquela «anomalia» da vida, deveriam ter chegado todos mortos. Perturbados e indecisos, vão receber ordens. E, numa encenação paroxística, inicia-se uma verdadeira caça às lebres: soldados e cães dilaceram e assassinam, num puro acto de explosão de mal absoluto, aquelas centelhas de vida, sob o olhar petrificado das águias nazis que encimam o portão de entrada de Buchenwald. O acontecimento é revelador, não só da crueldade e da violência do regime nazi, mas também da rigorosa cadeia de comando que sustentava o sistema.
            Coloca-se, a propósito deste massacre gratuito, a necessidade de alguma reflexão sobre a origem e as causas da violência. Haverá uma “essência” da violência, como pergunta Wilem Schinkel (2010: 17)?  Onde se encontram as suas raízes? De que natureza se revestem? Freud manifesta-se convicto de que os comportamentos violentos resultam “de impulsos instintivos de natureza elementar, iguais em todos e tendentes à satisfação de certas necessidades primordiais.” (1915: 10), e defende que alguns desses impulsos recalcados, que emergem sob a forma de pulsões más, podem ser amaciados e superados, quer pela líbido, quer pela educação: as pulsões egoístas e violentas, por união com as componentes eróticas, e pela educação dão origem às pulsões sociais. Não rejeita, porém, a condicionante determinista como conformadora do temperamento humano, alertando para os riscos de sobrevalorização da parte inata em detrimento da componente cultural Havendo que contar com as imprevisibilidades da vida, postula momentos de involução, de valorização excessiva das pulsões negativas, que encontram terreno fértil para proliferar em períodos de grande tensão e de confronto (cf.:12-16).
            Hannah Arendt estabelece uma relação estreita entre poder e violência: “violence is nothing more than the most flagrant manifestation of power” (From on violence: 236). Questiona diversas teorias que, em seu entender, pretendendo legitimar e enquadrar a violência no aparelho do Estado de direito, se limitam a sublinhar indirectamente a natureza violenta do poder. Se a essência do poder é a realização do comando, que diferença há entre este e o cano de uma espingarda? Arendt leva ao extremo esta dualidade, que Paul Ricœur haverá de contrariar, em Pouvoir et Violence; porém, a relação do pensamento de Arendt com a descrição, feita por Semprun, do massacre das crianças judias, fornece matéria de reflexão para a dilucidação dos mecanismos de violência utilizados por um poder discricionário, racional e finalisticamente estruturado.
            E outras questões se colocam, quando se problematiza a génese da violência, as suas práticas e o grau de aceitabilidade por parte da opinião pública. Parece haver, por parte de alguns teóricos, uma cegueira política que os inibe, por razões de natureza eminentemente ideológicas, de determinar e escrutinar os contextos sociais propícios à eclosão da violência No Anti-Dϋhring, Engels defende que, em sociedades assentes na exploração do homem pelo homem, germina e cresce a necessidade de domínio pela força, por parte dos detentores de poder económico, aproximando-se da teoria arendtiana. Verberando violentamente as posições defendidas por Dϋhring, Engels desenvolve uma análise rigorosa das condições sociais e das relações de trabalho instaladas no seio de sociedades onde surgiu a propriedade, para as quais a violência tem um carácter instrumental.
             A violência apresenta-se, então, como condição inerente ao desenvolvimento económico das sociedades baseadas na acumulação de capital e constitui parte integrante da modernidade: “Instead, it [violence] becomes a constitutive element of the modern societies developping its own momentum within their various sub-systems.” ((Hϋppert, 1997: 14). As manifestações de violência directamente ligadas a esferas de legitimidade da força contra uma agressão externa, ou como forma de auto-defesa, bem como decorrentes da esfera mítica ou religiosa, forneceram matéria ideológica permissível às teorias propensas  a encará-la como excesso, excreção ou barbarismo.
            A repressão e o extermínio – de judeus e não judeus -  perpetrados pelo nazismo, escrutinados à luz desta filosofia de perniciosos efeitos para a história e a para a memória da humanidade, podem reduzir a história dos factos e a memória dos acontecimentos a um conjunto de cerimónias e de rituais homogeneizadores e uniformizadores “qui porte atteinte aux identités et aux appartenances traditionnelles” (Todorov, 1995: 53), numa retórica das grandes narrativas indiferenciadas (cf. Geertz, 2010: 11) que silencia a exemplaridade da memória futurante:

 (…) agora, depois de todos estes anos, de esquecimento voluntário, não só posso contar esta história [das crianças judias], como é preciso que eu a conte. É preciso que eu fale em nome das coisas que aconteceram, não em meu nome pessoal. A história das crianças judias em nome das crianças judias. A história da sua morte na grande avenida que conduzia à entrada do campo, sob o olhar de pedra das águias nazis, no meio das gargalhadas dos S.S., em nome desta morte e só dela. (s. d.: 217).    


         Gérard e a faia de Gœthe

            “Talvez ele tenha dito: «Não me deixes, Gérard» e Gérard salta para o cais, no meio da luz ofuscante.” (s. d.: 293); fala, pela derradeira vez, a primeira pessoa. O relato de A Longa Viagem é feito na primeira pessoa que sempre colocou grandes problemas epistemológicos, quanto à sua verdadeira natureza, na gramática do discurso ficcional. O presente[5] interpela, desde logo, a essência dessa voz que, não só enuncia o discurso, como dele se apropria, anulando a distância entre a realidade e a verosimilhança. Este risco, deliberadamente corrido por Semprun, esbate-se de forma inteligente e eficaz, na projecção da obra literária enquanto objecto testemunhal: “Il me faut donc un «je» de la narration, nourri de mon expérience mais la dépassant, capable d’y insérer de l’imaginaire, de la fiction…Une fiction qui serait aussi éclarante que la vérité, certes” (1994: 175). O autor afirmou repetidamente que a sua pátria era a linguagem: “Only one thing remained reachable, close and secure amid all losses: language.” (Ferrán, 2001: 282).
            Gérard cai de pé, sob a luz intensa e fria dos holofotes acesos para o grande espectáculo de bestialidade (como o que há-de presenciar, mais tarde, à chegada das crianças judias), numa desesperada marcha contra a inanição e a violência gratuita dos S.S, na esperança de chegar ao campo. Ocorre-lhe uma outra marcha, esta pelas ruas de Compiègne, pouco antes de embarcar para Buchenwald e reconforta-se recordando um olhar, um gesto, um aceno, uma expressão solidários e encorajantes, entrevistos na massa humana perfilada nos passeios.
            A memória de uma outra memória estende-lhe a mão necessária, para que não vacile e esqueça a dor dilacerante, o frio e a fraqueza: “Diz de si para consigo que uma avenida daquelas não aparece muitas vezes, que é preciso tirar dela o maior partido, encher bem os olhos com aquelas imagens.” (s.d.: 311). Há uma incompreensão que assola Gérard e que se abate sobre todos os prisioneiros nazis, perante um código desconhecido, uma imagética, uma teatralidade, um ritual que perturbava e magoava duramente: «Warum? Porquê?», perguntou, um dia, Primo Levi: «Aqui não há porquês». Submetidos a uma prática sistemática de desterritorialização física e identitária, desterrados no cerne de uma lógica absurda, construída em torno de uma linguagem alienígena, a substância humana vai-se delindo numa atmosfera propícia à reificação: “Este «não ser falados» tinha efeitos rápidos e devastantes. A quem não nos fala, ou se dirige a nós com berros que mais nos parecem desarticulados, não nos atrevemos a dizer-lhe palavra.” (Levi, 2008: 91). Primo Levi perscruta a memória latente da incomunicabilidade, na realidade do universo concentracionário alemão. Ocorre a analogia com a Metamorfose de Kafka. A violência da incomunicabilidade é uma forma de destruição de qualquer forma de sociabilidade.
            A faia de Gœthe adquire um relevante sentido simbólico, não só para a abordagem do nazismo e das suas raízes, mas, sobretudo, como exemplo do aniquilamento da cultura alemã pelo terror nazi. Semprun era um apreciador da língua e da cultura alemãs; aprendera alemão, em criança, mais tarde, no liceu e na faculdade, os filósofos e os escritores germânicos moldaram, de algum modo, a sua formação intelectual e humana. A cultura alemã marcara, no século XIX, o pensamento ocidental e a matriz identitária da Europa. Como fora possível, então, a «queima dos livros», em 1933?
            Gœthe era um símbolo da inteligência e da cultura, uma voz problematizadora da existência humana, uma referência literária incontornável.
O campo de Buchenwald fora construído na colina de Ettersberg, perto de Weimar, em cujos arredores se situava a casa do escritor que, acompanhado do seu secretário Eckermann, dava longos passeios, sentando-se sob a copa de uma faia – a faia de Gœthe, como passou a designar-se. Numa ironia trágica, haverá de ser consumida pelo fogo das tropas aliadas.
            Gœthe e a sua faia são evocados diversas vezes, por Semprun, ao longo das diversas obras que escreveu sobre o terrorismo nazi. Após a libertação, vai, na companhia do tenente judeu americano Rosenfeld, responsável pela libertação do campo, visitar a casa do escritor. De ascendência alemã, conhecedor profundo da cultura alemã, Rosenfeld viveu dolorosamente o pesadelo nazi; terá constituído para ele, de algum modo, a remissão da culpa, a decisão de organizar uma visita obrigatória aos crematórios, para os habitantes de Weimar, confrontando-os com os horrores da morte com que, passivamente, conviveram: “Votre jolie ville, leur disait-il, si propre, si pimpante, pleine de souvenirs culturels, cœur de l’Allemagne classique et éclairé, aura vécu dans la fumée des crématoires nazis, en toute bonne conscience!” (1994: 90).
            Gérard recorre à metáfora da ausência de pássaros no céu de Ettersberg para traduzir o espectáculo inenarrável da cremação dos judeus e o cheiro nauseabundo saído das enormes chaminés. Nos últimos meses, os fornos funcionavam ininterruptamente para incinerar os milhares de judeus provenientes de Auschwitz.
             Num dos passeios, num acto de homenagem e desagravo à memória do escritor alemão, Rosenfeld e Gérard vão visitar a casa de Gœthe, à guarda de um alemão confessadamente partidário da ideologia nazi.





             O imprescritível

            Num encontro fortuito, oito anos após a libertação, Semprun conhece a bela Sigrid, jovem modelo fotográfico; o facto de ambos poderem falar em alemão propiciou uma conversa mais longa e suscitou na jovem uma acrescida curiosidade sobre aquele homem que dominava bem a sua língua materna:

       «Wo hast Du’s gelernt?», pergunta a rapariga.
       «Im Kazett.» (…)
       «Wo denn?», diz ela surpresa. Ao que parece, não compreendeu.
       Ela não sabe, evidentemente, que estas duas iniciais K, Z, designavam os campos de concentração do seu país, que era assim que os designavam os seus concidadãos que lá haviam passado dez, doze anos. (s. d.: 186).

            A conversa continua, em forma de absurdo e intransitivo interrogatório, para a jovem alemã que desconhecia nomes e instituições, mas sabia que o seu pai não pertencera à estrutura concentracionária, nem fora nazi. Desesperado e atónito, Semprun exclama:
       «É certo», digo eu, «não sabes. Ninguém sabe já nada. Nunca houve Gestapo, nunca houve Waffen-S.S., nunca houve Totenkopf. Devo ter sonhado.»
       Naquela noite não sei já se sonhei tudo aquilo, ou se estou a sonhar, desde que tudo aquilo acabou.
       «Não acordes esta noite os que dormem», digo eu. (188).

            Abre-se de novo o catálogo dos silêncios e dos silenciamentos ocorridos após o extermínio nazi, um pouco por todo o lado. A culpa, quando é reconhecida, cinge-se ao domínio do privado ou das grandes alocuções e declarações, em tom apoplético ou contidamente estudado. A desmontagem esclarecida das condições históricas e políticas que propiciaram a eclosão da ignomínia cobrem-se de um oportuno manto de objecção das consciências inquietas.
            As verdadeiras vítimas, os que morreram, já repousam, tranquilas no coração das nuvens[6]; a História regista a versão oficial; os sobreviventes aguardam transidos, ou emudecem para sempre. Recrudescia a tendência para desnaturalizar a violência ao mesmo tempo que esta era encarada como uma nova forma de produção do ‘carácter destrutivo’ do sistema capitalista (cf. Hϋppauf: 17), que se acentuou nos últimos anos do século XX, com novas colorações e novas frentes, mas sempre dramaticamente eficaz.
            Em 1992, quarenta e sete anos, após o seu último dia no campo de extermínio, e vinte e nove, após a publicação de Longa Viagem, Jorge Semprun reentra no espaço de uma morte antiga, acompanhado de perto pelo fantasma do jovem judeu alemão Rosenfeld. Verifica que a mãe natureza se encarregara de apagar as marcas profundas da dor e do horror: a relva, as plantas e algumas flores tinham vencido os sinais da morte. Olha, extasiado, para as aves regressadas ao céu de Ettersberg.
            Nessa noite, porém, a neve voltou a cair sobre o seu sono:

       Mais la neige était tombée sur mon sommeil.
       Elle recouvrait la forêt nouvelle qui avait poussé sur l’emplacement du Petit Camp. Sur les milliers de cadavres anonymes, qui n’étaient pas partis en fumée, comme leurs frères d’autrefois, qui se décomposaient dans la terre de Thuringe. (1994: 316).

            O fardo da memória que arrasta o trauma aflora ainda nesta evocação da neve, da mesma neve que, sob os holofotes e o olhar de pedra das águias nazis, ao som de uma marcha wagneriana, os cegara, no final da longa viagem.
            As camadas sucessivas de imagens que, num ápice, acorrem à memória de Jorge Semprun, dezassete anos depois, cruzam-se com outras, igualmente iníquas e, absurdamente se equivalem, como se a humanidade permanecesse cega aos sinais preocupantes que a realidade lhes ia colocando diante dos olhos: a  semelhança entre  o campo de Quarentena de Buchenwald, e as barracas dos subúrbios negros  denunciados no filme Come back, Africa. Como   também o invadem as imagens dos trabalhadores agrícolas expulsos das suas terras, após a vitória franquista, amontoados, entre lixo e moscas, no vale de «La Filipa», em Madrid, a trezentos metros dos prédios de luxo.
            Também por estas razões, a neve continuou a assombrar-lhe o sono.
           
      









[1]  Pressupõe-se o conceito de «hospitalidade» de Jacques Derrida: o ouvinte/leitor  está disponível para a alteridade do outro, sem condições prévias.

[2] Ruth Klϋger escreveu Landscapes of Memory  (New York, The Feminist Press 2001), de que este pequeno excerto é retirado, na tradução brasileira. Sobrevivente dos campos de concentração, emigrou para os Estados Unidos em 1947. Só em 1992 publica o primeiro livro de memórias: Weiter Leben: Eine Jugend.  

[3] Jean-Jacques Lecercle, em La Violence du Langage (PUF, 1996), teoriza a importância do excesso, do que não cabe na norma, nem na doxa  (le reste), nas manifestações da linguagem do pathos que, neste caso, se aplica com propriedade: trata-se de encarar a linguagem como forma de sobrevivência.

[4] Usa-se intencionalmente este termo, na acepção de criação arbitrária, de exercício  criador autotélico, como tradução apropriada do juízo superficial de Paulhan.

[5]  Quando se usa o presente, “a Literatura torna-se depositária da espessura da existência, e não da sua significação.” (Barthes, 1997: 36).

[6] Paráfrase de um verso de Celan, que há-de servir de título à colectânea de ensaios de Jorge Semprun, publicada em 2010, pela editora Flammarion.




                                              





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