domingo, 23 de abril de 2017

O MUNDO EM 2035, SEGUNDO A CIA



PARA QUEM GOSTA DE FICÇÃO (SUPOSTAMENTE ?) CIENTÍFICA



The World Factbook — Central Intelligence Agency - CIA

Estado provável do mundo daqui a 20 anos:

. futuro sombrio (envelhecimento, nacionalismos, poluição, etc.)

. influência provavelmente positiva das diásporas intelectualmente benéficas e das biotecnologias

Três cenários possíveis:
- mundo dominado por Estados isolados (nacionalismo)
- esferas de influência cultural (territórios russófonos)
- redes privadas (Igrejas, Empresas, etc.)
A escolha será entre um planeta «Trump», «Putin» ou «Bill Gates».

(fonte:«Sciences Humaines», Mai, 2017; nota de leitura)


Les vingts prochaines années – L’avenir vu par les services de renseignements américain, Bruno Tertrais, Les Arènes, 2017, 300 p. 

quinta-feira, 20 de abril de 2017

A FINANÇA ESCAPA-NOS E MINA A DEMOCRACIA


LADISLAU DOWBOR

é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,



"Nós perdemos qualquer controle sobre os sistemas financeiros"
Dowbor aborda drama de estados nacionais, como o Brasil, sob constante ameaça de ver o capital sair do país caso resolvam taxar ou diminuir juros cobrados

A relação entre “as dinâmicas financeiras e a erosão da democracia” foi o tema da conferência do economista Ladislau Dowbor, durante sua participação nas Jornadas de 2017 – É hora de voltar a pensar!
 
Professor de economia da PUC-SP, Dowbor explicitou como o sistema financeiro, sem qualquer regulação global, vem atuando na desestruturação de economias e democracias pelo mundo, impondo uma nova forma de exploração social.
 
“O dinheiro se globalizou. A finança que já foi ouro e papel se tornou sinais magnéticos que viajam na velocidade da luz no planeta. Temos hoje uma economia global, mas não temos um governo global e ninguém manda no processo. Além disso, o espaço de representação das riquezas, onde se dão os sistemas financeiros, é diferente do espaço onde se dá a política que são os governos: a gente não elege quem manda no sistema financeiro”, avaliou.
 
Apontando a fragilidade de regulação desse sistema até mesmo por organizações mundiais como FMI, Banco Mundial, BIS (Banco de Compensações Internacionais) e a própria ONU, Dowbor abordou o drama dos estados nacionais, entre eles o Brasil, sob constante ameaça de verem o capital sair do país caso resolvam taxar ou diminuir os juros cobrados.
 
“O caos é global e vem gerando a incapacidade dos governos nacionais de orientarem seus recursos para financiarem o que é necessário para o desenvolvimento. Conforme você orienta o dinheiro, ele terá efeito multiplicador ou drenará a economia, retirando os recursos necessários para ela funcionar”, destacou.
 
Um caos que não atinge só Brasil, mas o mundo inteiro. “Nós perdemos qualquer controle sobre os sistemas financeiros e isso acontece em todas as partes”, salientou, ao mencionar a ausência de autoridade política e a perda da governança que é “a capacidade de fazer funcionar o conjunto do sistema” no mundo.
 
Ricos cada vez mais ricos
Um processo expresso nos dados relativos a dois eixos críticos hoje no planeta: o desafio ambiental e o desafio social. A destruição do meio ambiente vem se acelerando com o avanço tecnológico. Entre 1970 e 2010, 52% da fauna do planeta foram destruídas, exemplificou. O desafio social, por sua vez, reflete-se na imensa concentração da riqueza mundial:
 
“Antes só estudávamos a concentração de renda, o nível salarial. Concentração de riquezas é muito maior. Uma imensa massa de pobres no planeta que consegue chegar ao fim do mês usou seu salário para pagar transporte, aluguel, gastos com suas necessidades básicas. Quem é rico, porém, consumiu o que quis consumir e ainda sobrou dinheiro. O que ele faz com essa sobra? Aplicação financeira, ele compra papeis. Ou seja, ele não produz nada, mas esses papeis rendem”.
 
“O que é um bilionário?”, questionou o economista, ao contar que se você pegar um bilhão de dólares e aplicar isso em um banco, em qualquer produto que renda 5%, um rendimento moderado, você ganhará 137 mil dólares por dia. “Isso é um bilionário, as pessoas que passam um certo nível de riqueza passam a gerar aplicações financeiras e isso começa a coagular no nível planetário”.
 
Os dados do CreditSuisse dão a dimensão do coágulo: apenas 8 famílias detêm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial (3,6 bilhões de pessoas). Pior: 1% dos mais ricos possui mais riqueza do que os 99% de toda a população do mundo.


“Está acontecendo um processo acumulativo de enriquecimento do mais ricos. Essas 8 famílias que têm mais do que 3,6 bilhões de pessoas produziram isso? É óbvio que não, elas compraram papeis que geram mais papeis”, denunciou. Segundo Dowbor, se isso acontecesse apenas dentro de um país, seria possível taxar o enriquecimento sem contrapartida produtiva com um forte imposto, a exemplo do que fez Roosevelt em 1933, quando foi aplicada  uma alíquota de 90% sobre o dinheiro improdutivo.
 
“Com o dinheiro improdutivo de cima eles financiaram a dinamização da economia produtiva por baixo, tirando a economia americana da crise. O que está acontecendo hoje no planeta é o contrário: estão secando a capacidade de financiamento de iniciativas produtivas que geram emprego e jogando esse dinheiro para cima. O resultado é uma crise planetária”, apontou.
 
A crise planetária
Partindo da premissa de que econômica não é ciência, mas a definição das “regras do jogo” e, sobretudo, um pacto da sociedade, Dowbor citou o exemplo da Finlândia, onde professores, advogados, engenheiros, arquitetos contam o mesmo nível salarial, enquanto que no Brasil, a diferença entre os rendimentos de um gestor financeiro e de um professor é astronômica.
 
“Quem inventou isso? O mecanismo econômico? Não é nada de mecanismo econômico. São as regras do jogo e nós temos de repensar essas regras”, reiterou. Em sua avaliação, urge uma reorientação do sistema econômico global “em termos de proteção ao meio ambiente e de financiamento da inclusão produtiva de 4 bilhões de pessoas que se encontram hoje fora do sistema”.
 
Quase 2/3 da população mundial encontram-se fora do sistema. Além disso, o planeta vem sendo destruído em função dos interesses de 10% a 15% da população mundial. “Onde estão os recursos necessários para financiar a conversão desse processo? Navegando nos sistemas especulativos financeiros”.
 
Da sua experiência como consultor das Nações Unidas, Dowbor salientou necessidade de olharmos várias experiências de aprofundamento da democracia em outros países. Na Suécia, por exemplo,  72% de todos os recursos públicos vão diretamente para o município em uma espécie de democracia de rédea curta, permitindo que esses recursos atendam às necessidades da comunidade.
 
Na Alemanha, relatou, o sistema de grandes bancos do país controla apenas 13% do crédito e “a quase totalidade é administrada por caixas econômicas municipais, públicas e comunitárias e alguns bancos regionais”. A França, por sua vez, conta com ONGs de intermediação financeira que permitem ao cidadão escolher a atividade produtiva que ele pretende financiar ao depositar a sua poupança.
 
“As soluções vão na linha de aprofundamento da democracia. Se a gente não construir esses processos democráticos, sempre vão aparecer os salvadores da pátria, até porque o ódio mobiliza muito mais do que as propostas”, alertou. Em sua avaliação, em termos de dinâmicas políticas, o que vivemos hoje não é muito distinto do contexto dos anos 1930, com a grande crise mundial e a subida dos fascismos por toda a parte.
 
As alternativas? “Ou temos um salvador da pátria, com toda a tragédia que isto significa; ou construímos democracias efetivamente pela base da sociedade”.
 
Engessamento da economia brasileira
Reiterando que o sistema financeiro é planetário e que o Brasil pertence a ele -30% do lucro mundial do Santander vem do nosso país, por exemplo - Dowbor mencionou a guerra travada contra o governo Dilma Rousseff após a tentativa de diminuição dos juros que chegaram a 7,5% em 2012. “Não teve mais governo depois disso”.
 
Convencido da urgência de uma compreensão maior na sociedade sobre como funcionam esses processos econômicos, didaticamente, o economista explicou que uma economia depende de quatro motores principais: a exportação, o consumo das famílias, a produção da indústria e as atividades do Estado.
 
Hoje, a exportação representa 10% da economia brasileira em um contexto mundial onde 16 grupos controlam todas as commodities do mundo: grãos, energia, minerais metálicos e não metálicos. “Só o grupo BlackRock tem um turn over de 14 trilhões de dólares. O PIB dos Estados Unidos é de 15 trilhões de dólares. Estamos falando de uma empresa”.
 
Segundo Dowbor, a saída do país da crise depende mais dos outros três motores, porém eles se encontram engessados. O consumo das famílias foi fortemente estimulado durante os governos Lula e Dilma, em grande parte através de crédito, aumento de salários mínimos, benefícios de prestação continuada. “Houve um imenso esforço de civilizar o país começando pelo andar de baixo”, avaliou.
 
Porém, “os bancos e crediários de diversos sistemas entenderam muito rapidamente como as novas tecnologias permitem tirar dinheiro do bolso do mais pobre. Se ele atrasar o pagamento, paga 485% de taxa de juros no rotativo; 320% no cheque especial. Foi legal bancarizar os mais pobres, mas nós os colocamos diante do leão sem conhecimento e sem defesa”
 
Dowbor lembrou que existia um marco institucional regulatório no Brasil, “que se chamava artigo 192º da Constituição e limitava a taxa de juros reais a 12%, o equivalente hoje, considerada a inflação, a 18%”. Comparado a outros países, a diferença é gritante: na França, uma pessoa física consegue empréstimo a 3,5% ao ano. Além disso, destacou, “ninguém no mundo fala em juros ao mês, isso é uma bobagem radical”.
 
Novas formas de exploração
Temos, portanto, a ausência de conhecimento da população sobre os processos econômicos, a retirada do marco regulatório da Constituição somados ao fato de que as pessoas endividadas se sentem culpadas e permanecem isoladas. “Os caras que têm seus salários diminuídos em uma empresa se organizam em sindicatos e tal. Mas ninguém vai na porta do banco questionar ´como vocês podem cobrar 485%´”.
 
Estamos diante da “criação de um outro sistema de exploração paralelo à mais-valia tradicional, através dos sistemas financeiros. O cidadão assinou o contrato e o dinheiro dele está no banco, o dinheiro dele é o cartão. Há um terminal dos intermediários financeiros dentro do bolso de cada um de nós”, apontou.
 
Frente ao endividamento das famílias, dá-se a queda do consumo e, por consequência, a queda da produção industrial. “As empresas não têm para quem vender e ainda precisam tomar crédito a juros de 30% ou 40%”. O resultado é que ao invés de optar por atividades produtivas, essas empresas acabam lucrando mais com as atividades especulativas, comprando títulos do tesouro que “pagam 12,25% para uma inflação a 5%”.
 
Já o quarto motor - o Estado - encontra-se atado pela dívida pública. “Ele não criou o tal do déficit. O que aconteceu é que desde de julho de 1996, para compensar os bancos da queda da inflação, foi criada a taxa Selic elevada. A média no período FHC, estima Luiz Gonzaga Belluzo, foi de 22%. E eles chegaram a 46%”.
 
Com os indecentes juros cobrados no país, explicou Dowbor, a cada pagamento da dívida pública, o dinheiro das pessoas é transferido aos bancos, impedindo que esses recursos voltem à sociedade por meio de salário indireto sob a forma de investimentos em saúde, educação, políticas sociais. Para onde foi vai esse dinheiro? “A evasão fiscal foi estimada em 570 bilhões, 10% do PIB, em 2016. O Brasil tem 520 bilhões de dólares acumulados no exterior em paraísos fiscais. Eles não só não investem como sequer pagam impostos”, apontou.
 
“A gente pode dizer Fora Temer, Fora Gilmar, Fora Moro e uma lista imensa, mas o problema é o sistema. A economia não funciona quando não tem gente comprando, porque não tem grana para comprar ou quando tem o dinheiro vai para o pagamento de juros. O dinheiro do Estado precisa voltar a financiar a economia. Não tem mistério quanto aos caminhos, mistério existe quanto aos equilíbrios políticos que permitam os caminhos”.

MÁRIO CENTENO - RETALHOS DE UMA VIDA





Era o matemático da turma

Mantém-se sempre calmo
                                                                            
Impedido de chefiar o Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal, cujo concurso tinha ganho, Mário Centeno virou-se para a intervenção cívica e política. Retrato de um ministro das Finanças que tem um raciocínio matemático e que nunca perde a calma nem grita nas situações de maior pressão. Dizem-no leal, íntegro, vertical e um homem bom Nicolau Santos Diretor-Adjunto A economia portuguesa está em boas mãos? Essa é uma pergunta que certamente muitos fizeram quando Mário Centeno foi escolhido para ministro das Finanças de Portugal por António Costa, depois de ter liderado o grupo de 12 economistas que elaborou o programa económico com que o PS se apresentou às eleições de 4 de outubro de 2015. Centeno era um ilustre desconhecido da esmagadora maioria dos portugueses e o seu trajeto ligava-o quase exclusivamente à sua universidade, o Instituto Superior de Economia e Gestão, e à sua carreira técnica no Banco de Portugal. Parecia uma boa pessoa. Mas seria um bom ministro? Serão seguramente os resultados económicos do país a ditar a imagem com que os portugueses ficarão de Mário Centeno. Mas uma coisa é incontornável: além de ser um dos maiores especialistas nacionais em mercado de trabalho, com dezenas de artigos publicados em revistas internacionais, tem um currículo académico brilhante. Basta comparar. Desde 23 de julho de 1976, Portugal teve 23 ministros das Finanças. Destes, só sete se doutoraram. E dos que o fizeram, só dois se doutoraram nas duas melhores universidades de economia e gestão do mundo: Miguel Beleza, no MIT, e Mário Centeno, por Harvard. Centeno partilha aliás com Miguel Beleza o facto de ambos terem tido professores que vieram a ser Prémio Nobel de Economia: Paul Samuelson (1970), no caso de Beleza, OliverHart (2016) no caso de Centeno. Este ponto é de sublinhar porque há um preconceito segundo o qual a competência técnica reside nos economistas de centro-direita. Miguel Beleza dizia mesmo há alguns anos, com humor e ironia, que havia dois tipos de economia: a microeconomia e a má economia, distinguindo assim aqueles que fazem incidir os seus estudos no comportamento das empresas e das famílias e os que olham a economia com uma visão de helicóptero, analisando sobretudo os grandes agregados macroeconómicos e tirando conclusões a partir deles. Os primeiros estariam predominantemente no espaço político de centro-direita e os segundos no centro-esquerda. Ora, entre os ministros das Finanças doutorados há um relativo equilíbrio entre direita e esquerda: para Cavaco Silva (York University, Reino Unido), Miguel Beleza (MIT, EUA), Braga de Macedo (Yale University, EUA) e Vítor Gaspar (Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa) contrapõem-se Ernâni Lopes (Universidade Católica Portuguesa), Luís Campos e Cunha (ColumbiaUniversity, EUA), Fernando Teixeira dos Santos (SouthCarolineUniversity, EUA) e Mário Centeno (Harvard, EUA). Contudo, o atual ministro das Finanças não se fica por aqui. Tem um longo e brilhante currículo académico: é licenciado em Economia (1990) e mestre em Matemática Aplicada (1993) pelo Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa, e mestre (1998) e doutorado (1995-2000) em Economia pela Harvard University, nos Estados Unidos. Alcançou 20 valores no exame de entrada na faculdade, ficando no percentil 99 no exame internacional de acesso às universidades americanas. Quando se olha para um currículo assim espera-se sempre estar perante uma pessoa que, enquanto aluno, deveria ser um rato de biblioteca, vivendo enfronhado nos livros e centrado no estudo. Nada mais errado. Se todos os que conviveram com ele nos bancos da universidade não têm dúvida de que era um excelente aluno (foi o melhor do curso, com uma média de 16, batendo por algumas décimas Renata Mesquita e José Carlos Mateus), também foi muito ativo no domínio associativo (a lista que integrava venceu as eleições de 1986, tendo ficado com os pelouros do planeamento desportivo e da representação institucional) e desportivo (jogava râguebi na equipa do ISEG quando esta se encontrava na 1ª Divisão, na posição de ponta; foi dirigente federativo da modalidade; e também não dispensava as futeboladas com os colegas (não era excecionalmente habilidoso mas cumpria muito bem, diz quem o viu jogar, embora a posição em campo não fosse definida, porque no pelado inclinado que existia no ISEG a tática era sempre a mesma: todos ao molho e fé em Deus — digo eu que também joguei lá muito). “Era uma pessoa normal, bem disposta, gregária, muito sociável. Não era uma pessoa tímida nem retraída. Não era nenhum nerd”, diz Luís Costa, professor associado do ISEG e colega de Centeno desde o primeiro ano de faculdade, que assinala a capacidade que o atual ministro das Finanças tinha para se manter como um dos melhores alunos do curso — “era e é uma pessoa muito acima da média” — ao mesmo tempo que dedicava longas horas à associação de estudantes — “a associação dava-lhe muito trabalho”. Também Sérgio Figueiredo, atual diretor de informação da TVI, que entrou no ISEG no mesmo ano que Centeno, sublinha esses traços. “Era o matemático da turma. Sempre que precisávamos de ajuda sabíamos a quem tínhamos de ligar.” Apesar dos elogios, Centeno cultiva a modéstia ou algum prurido quanto ao seu trajeto académico. “Terá sido o melhor ou um dos melhores alunos no seu curso de doutoramento em Harvard. E aí mostrou as capacidades que tem”, diz Luís Costa. Contudo, acrescenta, Centeno “nunca toca nestes assuntos. Desvia a conversa. É uma pessoa modesta e não gosta de falar deste tema.” Sérgio Figueiredo corrobora: “O Mário é uma pessoa normal, como qualquer um de nós.” Curiosamente, terá sido um acaso que levou Centeno para o Departamento de Matemática do ISEG e não para o Departamento de Economia quando começou a dar aulas. Com efeito, quando foi aberto um concurso para assistentes estagiários para este último departamento, Mário Centeno não se encontrava no país e não pode comparecer às entrevistas. Ficaram as duas partes com muita pena mas não havia nada a fazer. O concurso tinha fechado. Por isso, quando abriu outro concurso mas agora para o Departamento de Matemática, Centeno concorreu, entrou e acabou por fazer o mestrado em Matemática Aplicada (1993), sendo orientado por Teresa Almeida. António Mendonça, ex-ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e antigo presidente do ISEG, corrobora a boa imagem de Centeno: “Acompanhei a vida do Mário Centeno como estudante e fui acompanhando o seu percurso ao longo dos anos. Tenho a melhor impressão dele, enquanto estudante. Foi sempre um aluno exemplar e, além disso, teve tempo para participar nas atividades estudantis, com entusiasmo. O seu percurso académico posterior é impecável e sempre desempenhou as funções que assumiu profissionalmente com competência, reconhecida por todos. Pessoalmente, é de uma simpatia intrínseca, bem humorado e de fácil relacionamento. Era estimado por colegas e professores.” Miguel SaintAubyn, igualmente professor no ISEG, tem também “muito boas recordações” de Centeno, quer como “excelente aluno” quer pelo seu envolvimento no movimento associativo. Já depois de ter concluído o curso trabalhou com Vítor Constâncio no sentido de desenvolver um modelo macroeconómico para Portugal. E pertence à UECE — Unidade de Estudos sobre Complexidade e Economia, que SaintAubyn também integra. Banco de Portugal: ascensão e queda Após chegar dos Estados Unidos, onde esteve a tirar o doutoramento entre 1995 e 2000 e onde nasceu Tiago, o primeiro dos seus três filhos, Mário Centeno, portador já na altura de um currículo invejável, candidata-se e entra para o Banco de Portugal. Contudo, “não entrou como uma estrela mas para aprender”, diz Luís Costa, que não ficou surpreendido quando Centeno apostou no banco central. “Estava dentro da esfera de interesses da maior parte de nós e era uma excelente oportunidade.” Centeno agarra a oportunidade e a partir de 2004 passa a ser o diretor-adjunto do poderoso Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal. Permanece no cargo até 2013 e quando a então diretora do departamento, Ana Cristina Leal, sai para integrar a administração da Caixa Geral de Depósitos, concorre ao concurso internacional aberto pelo banco para preencher o cargo. Apresentam-se mais de uma dezena de candidatos. Centeno vence o concurso, mas, para surpresa geral, o banco encerra o processo sem escolher o novo diretor, alegando não se ter encontrado ninguém que reunisse “a combinação de atributos necessária para assegurar o padrão de liderança e de gestão de equipas” e que “garantisse a prossecução de um mais ambicioso posicionamento estratégico do departamento nos planos analítico e institucional”. Como é óbvio, a história estava muito mal contada e cheirava a esturro por todos os lados. O facto é que durante o período de assistência, com o correspondente programa de ajustamento, vários economistas começaram a fazer ouvir a sua voz, criticando as opções políticas que estavam a ser seguidas. Mário Centeno foi um deles. “Houve mais pessoas a envolver-se na política e a pronunciar-se sobre a situação económica do que numa altura normal”, admite Luís Costa. Talvez tenha sido isso que o tenha levado a envolver-se mais no debate político-económico, acrescenta. Lembra, contudo, que “antes já tinha havido algumas tomadas de posição perante determinadas opções económicas que tinham dado alguma polémica”, nomeadamente em relação ao mercado de trabalho em Portugal. Pode ter sido um artigo de opinião ou alguma discordância pública com as opções do Governo PSD/CDS ou as suas intervenções nas reuniões com a troika. O certo é que para a petitehistoire ficará que Vítor Gaspar, então ministro das Finanças, não gostou de algumas das posições de Centeno, nomeadamente de uma conferência que organizou. Ou então terá sido o próprio governador, Carlos Costa, que se colocou claramente ao lado das opções governativas durante o período de ajustamento, que se terá sentido ele próprio visado pelas declarações do atual ministro das Finanças O certo é que aconteceu algo impensável. Em mais de uma dezena de candidatos, quadros do próprio Banco de Portugal, nenhum serviu ao governador para dirigir o Departamento de Estudos Económicos. E a seguir Carlos Costa nomeou para o cargo Isabel Horta Correia, quadro da instituição desde 1990, mas que nem sequer tinha concorrido. “Foi um processo difícil para ele porque era uma coisa de que gostava”, admite Luís Costa. “O episódio marcou-o profundamente”, frisa Margarida Aguiar, diretora do Banco de Portugal e ex-secretária de Estado da Segurança Social. “Primeiro ficou muito admirado que não o tivessem convidado para concorrer ao cargo, o que costuma ser normal fazer-se. Depois ficou ainda mais admirado e surpreendido quando o concurso foi encerrado sem qualquer resultado. Sentiu-se injustiçado e muito triste com a instituição. Para ele houve uma quebra de lealdade, de confiança”, adianta. “Tinha todas as condições para ocupar o cargo, desde o currículo académico ao facto de ser vice do Gabinete de Estudos Económicos”, acrescenta Miguel SaintAubyn. Na altura, o Expresso apresentou uma prova cega aos seus leitores com os currículos resumidos dos três diretores anteriores (Vítor Gaspar, Maximiano Pinheiro e Ana Cristina Leal) à data de entrada em funções, comparando-os com o de Mário Centeno, e perguntando: qual dos detentores destes currículos não reúne condições para ser diretor do Gabinete de Estudos Económicos do Banco de Portugal? Centeno tinha seguramente o currículo mais sonante. Para escorar a sua decisão e afastá-lo de todo do Gabinete de Estudos Económicos, o governador fez passar a mensagem que Centeno teria violado com as suas posições de crítica às opções do Governo, sobretudo em relação ao mercado de trabalho, o dever de reserva a que supostamente todos os membros do Banco de Portugal estão sujeitos. Em declarações à revista “Visão”, em outubro de 2015, Centeno esclarece o que o dividia face ao Executivo de Passos Coelho: “Quando o anterior Governo pensou nestas medidas [austeritárias] achou que os jovens acomodariam o seu nível de vida e ficariam cá a empobrecer. Isso não aconteceu.” Para calar a polémica, que causou um profundo incómodo no Banco de Portugal, Carlos Costa convidou Centeno para diretor-adjunto, com funções de consultor da administração e um mandato para desenvolver um estudo sobre Reformas Estruturais e Processos de Ajustamento — que obviamente não se concretizou. Na prática, colocou-o numa prateleira. E terá sido aí que nasceu a decisão de se envolver mais profundamente no processo, que culminaria com as eleições legislativas de 4 de outubro de 2015. Ironia das ironias, foi assim Carlos Costa que, ao afastar Centeno do DEE, o lançou na senda de uma maior intervenção cívica e política (pois passou a ter bastante mais tempo livre), o que acabou por o levar a ministro das Finanças — com quem ele, Carlos Costa, tem agora de dialogar. “Um diálogo institucional”, sublinha Centeno. Nem mais nem menos que isso. Mas, como sublinha Margarida Aguiar, “as relações no plano institucional entre o Governo e o Banco de Portugal nem sempre são fáceis. Às vezes, beneficiam das boas relações pessoais entre o ministro e o governador. Neste caso, não beneficiam”. “Não conheço o processo que o levou a assumir responsabilidades de natureza mais política. Primeiro, a nível da elaboração da plataforma económica do PS. Depois, a nível governamental”, diz António Mendonça. “De certo modo, foi uma surpresa para mim a sua escolha para o exercício das funções de ministro das Finanças. Não que lhe não reconheça competências para tal, mas porque pensava que estaria mais orientado para outras responsabilidades, mais técnicas. Mas as coisas são o que são. Os desafios aparecem e temos de decidir. Penso que terá sido o caso”, refere o ex-ministro das Obras Públicas. Miguel SaintAubyn também diz que foi “bastante surpreendente” o empenhamento de Centeno quando aceitou liderar o grupo de economistas que elaborou a proposta económica do PS às eleições. “Não me lembro de ele ter qualquer militância, a não ser na juventude”, diz. Luís Costa afina pelo mesmo diapasão. “Foi uma surpresa? Sim e não. Sim quando ele apareceu à frente do grupo de economistas. Mas já não quando ele aceitou ser ministro das Finanças.” Margarida Aguiar garante que não ficou surpreendida “nem com uma coisa nem com outra. Olhou para o convite como um grande desafio e uma grande oportunidade. Era um grupo difícil devido à diversidade de pessoas e do pensamento económico. Mas levou o trabalho até ao fim. O que não estaria à espera é que o PS não ganhasse as eleições. Tinha a perspetiva que ia ter responsabilidades políticas”, mas não num Governo apoiado pelo Bloco e pelo PCP, a quem o programa do Executivo teria de fazer cedências. Sulista. Não elitista. Liberal Mas como é que um especialista no mercado de trabalho é primeiro convidado para liderar um grupo de economistas que tem de apresentar uma proposta de crescimento económico para Portugal e é depois convidado para ministro das Finanças? Bom, Centeno gosta sempre de lembrar aos que apontam a sua inexperiência em matéria de Finanças Públicas, que também JanetYellen é especialista em mercado de trabalho e isso não a impediu de ser escolhida para presidir à Reserva Federal em 2013, sucedendo a BenBernanke, continuando a ocupar o cargo. Na verdade, foi mesmo aquilo em que é especialista que levou ao convite, que lhe foi feito pessoalmente por Vieira da Silva, o atual ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que já o chamara em 2006 para colaborar na Comissão do Livro Branco para as Relações Laborais, embora algumas das suas ideias estejam claramente longe do ideário socialista. Com efeito, sob a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, Centeno lança em 2013 o livro “O Trabalho, Uma Visão do Mercado”, onde sustenta que a dualidade do mercado de trabalho é um dos grandes problemas nacionais (a par das baixas qualificações da esmagadora maioria dos trabalhadores), com os trabalhadores mais velhos muito protegidos, ao contrário dos mais jovens, onde predominam os baixos salários e os contratos precários. A sua proposta é a de um contrato único, acabando com os contratos a prazo, mas garantindo a adaptabilidade de trabalhadores e empresas às condições económicas. Defende também a criação de um seguro de desemprego, com uma conta individual para cada trabalhador e que a taxa contributiva das empresas para a Segurança Social esteja ligada à rotatividade dos trabalhadores, para assim incentivar os vínculos de trabalho mais duradouros. Estas propostas — e um outro estudo onde concluía que o aumento do salário mínimo pode ter efeitos negativos no emprego de trabalhadores pouco qualificados; ou um artigo onde criticava o excesso de regulação, que terá contribuído para a segmentação do mercado de trabalho e para dividir os trabalhadores dentro das empresas; ou a proposta de defesa de mecanismos conciliatórios com vista ao despedimento por comum acordo — levaram a que fosse catalogado como tendo um pensamento liberal. O atual ministro não concorda com o rótulo mas o certo é que as suas propostas não integraram o programa com que o PS se apresentou às eleições e muito menos o programa do Governo. Parafraseando Luís Filipe Menezes no congresso do PSD em 1995, quando catalogou os que criticavam a sua presidência de “sulistas, elitistas e liberais”, Mário José Gomes de Freitas Centeno é seguramente sulista (nasceu em Olhão a 9 de dezembro de 1966, o segundo de quatro filhos de uma funcionária dos CTT e de um bancário), não elitista, como referem todos os relatos atrás descritos, mas liberal de esquerda no que toca ao mercado de trabalho para os cânones do PS. Casou com uma colega do ISEG, tem três filhos a quem meteu o vício do râguebi e todos eles estão encaminhados, do ponto de vista académico, para as ciências económicas. Já não tem lugar cativo no Estádio da Luz, mas continua a ser benfiquista convicto e praticante. Fala e escreve espanhol fluentemente. Domina também o inglês, francês e italiano e tem boa compreensão do alemão. Foi premiado internacionalmente pelas suas investigações sobre o mercado de trabalho, a primeira em 2001, quando recebeu o YoungEconomistAward, da EuropeanEconomicAssociation, visando distinguir trabalhos de investigação de economistas com menos de 30 anos ou com o doutoramento concluído há menos de três anos; e a segunda em 2006 quando lhe foi outorgado o ScientifMeritAward, da União Latina. Margarida Aguiar, que trabalhou diretamente com ele no Banco de Portugal, é quem lhe traça o retrato mais fino. “É uma pessoa com uma extraordinária capacidade de trabalho, invulgar mesmo. É leal, franco, vertical e íntegro. Preocupa-se muito com a sua integridade. É uma pessoa muito inteligente e de raciocínio muito rápido. Reage com muita qualidade de pensamento e opinião a realidades complexas, com muitas variáveis em simultâneo, conseguindo produzir conclusões rapidamente. Trabalha muito bem com números. Baseia o seu raciocínio, pensamento e decisões em números. Tem um grande treino e muita facilidade em trabalhar e interpretar números. Era um fontanário. Produzia dados e indicadores como eu nunca tinha visto, que lhe permitem fazer a interpretação da realidade. É uma pessoa muito virada para o quantitativo.” Contudo, isso não o impede de ser “uma pessoa disponível”, acrescenta Margarida Aguiar, “que gosta de conversar, seja com um contínuo, uma secretária ou um técnico. Acaba por ser uma pessoa modesta. Despenderá todo o tempo necessário para dar utilidade à conversa. Não é arrogante. Nunca lhe diz que só tem cinco minutos para si. Despende tempo com os outros. É uma pessoa atenciosa, um humanista”. E o poder mudou-o como pessoa? “Até agora, nada”, garante Luís Costa. “Mas a figura política vai mudando. O Mário que tomou posse como ministro não é o mesmo de hoje. Aprendeu com a opinião pública.” Contudo, apesar da enorme pressão a que tem estado sujeito, quer por parte de Bruxelas e do Eurogrupo quer por parte da oposição, em particular do PSD, o ministro mantém o seu comportamento fleumático. “Nunca o ouvi dar um grito, nunca o vi irritar-se com ninguém. Mantém-se sempre calmo”, diz quem trabalha com ele no Ministério das Finanças. Sérgio Figueiredo concorda: “No ISEG, o Mário era mais acelerador do que amortecedor de crises. Mas não é propriamente esfíngico. Não é como o Vítor Gaspar, que nunca se percebia como estava. Quando tinha de se irritar, irritava-se. Mas mesmo sob pressão nunca perdia o discernimento. É sobretudo um ‘bonzão’. Não faz mal a uma mosca. Era incapaz de mentir e foi sempre muito autêntico, como se vê ainda hoje.” Sérgio Figueiredo faz contudo uma distinção. “Uma coisa é o nível da associação de estudantes ou da escola. Outra é estar a navegar em águas que não são as dele.” O poder, contudo, afastou-os. “Eu perdi o contacto pessoal com ele. Penso que foi a defesa dele, até talvez para proteger a nossa amizade. Hoje é uma pessoa muito mais defensiva. Vive com um ar agastado e ele não é assim.” E isso provavelmente porque, considera o diretor da TVI, lhe está a ser pedido um trabalho muito difícil, “onde confluem todas as contradições” do Governo à oposição, de Bruxelas ao primeiro-ministro. Há uma característica, contudo, que não se alterou. “O Mário é sobretudo muito leal. Isso não muda. Mesmo nos silêncios tenta proteger os que estão abaixo e acima.” E precisa: no caso da CGD, tem sido “vítima da sua inexperiência mas também da sua honestidade. Até ao momento não mentiu. Tossiu, omitiu. Enquanto não teve a certeza que não havia nada escrito não falou. E não entrega a cabeça de ninguém”. Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 26 de novembro de 2016