quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

UM TEXTO IMPERDÍVEL DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES. INTEMPORAL, TAMBÉM. 

(Com a devida vénia)

De António Lobo Antunes....

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria: - Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá, não gaste tudo em vinhoo atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:
- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros - O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis".


terça-feira, 13 de dezembro de 2016




UM CIGARRO CAI



                                        RECORTES DA VIDA DE CLARICE LISPECTOR





Nota prévia



Este trabalho propõe-se detetar alguns traços significativos da biografia de Clarice Lispector.

 Trata-se de uma leitura temática, orientada pela isotopia da perda, para cuja conformação concorrem, não só a ficção, mas também dados de natureza biográfica.

Do ponto de vista metodológico, selecionaram-se três períodos da vida da escritora – a infância, a separação conjugal e o incêndio que a mutilou; cruzaram-se os textos ficcionais e o estudo documental, retirando a substância suscetível de sustentar uma leitura pessoal, mas não anti-histórica, nem marcadamente subjetivista.



Clarice                                               



                                                                                              Clarice

                                                                                                 Veio de um mistério.

                                                                                                 Partiu para outro.

                                                                                                 Ficamos sem saber a

                                                                                                 essência do mistério.

                                                                                                 Ou o mistério não era essencial,

                                                                                                  era Clarice viajando nele.

                                                                                                                 Carlos Drummond de Andrade



Da abundante produção literária de Clarice Lispector, espalhada pelos  mais diferentes géneros e subgéneros,  não faz parte qualquer autobiografia. No entanto, é consensual que a escritora, durante toda a sua vida, não fez outra coisa senão “escrever-se”, numa prosa vibrante, estranha, caldeada de silêncios e de busca. O carácter reflexivo do seu temperamento, bem como a constante voracidade pela vida, que bebia até à dor, constituíram uma obsessão, uma interrogação permanente sobre o sentido da existência e sobre a alma das coisas.

Outros, escritores, críticos, estudiosos procuram plasmar nos seus textos a “autobiografia” que Clarice foi arquitetando, desde menina, nos pequenos contos recusados por incompreensíveis, nas histórias inventadas para alegrar o pai e as irmãs, nas heteronímias de que se disfarçou, nas personagens cinzeladas como carne, nos efeitos especulares de uma poética oblíqua.

A escritora Ana Miranda ficcionou, de modo muito feliz, um “auto-retrato” onde a autora porventura se reconheceria, se o pudesse ter feito. Clarice, publicado em 1999, vem, parafraseando Jorge Semprun, através do imaginário, tornar a realidade mais real. Sem escamotear que se trata de uma obra ficcional, a escritora traz-nos uma personagem que a cada momento poderia ser encontrada, feita pessoa, em qualquer lugar do imenso Rio de Janeiro.

 Por outro lado, a estruturação da mancha tipográfica – reduzida e envolta no silêncio da folha – incita o leitor à busca de informação biográfica e bibliográfica suscetível de preencher as lacunas e as omissões, para o que dispõe da obra de Moser. Aliás, Clarice há de transformar a sua vida numa busca incessante de si própria, como se, por alquimia secreta de um deus perverso, lhe fosse imposta, como redenção, a construção do puzzle existencial, cujas peças teria de buscar nos e com os outros:

“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.” (in MOSER, 2010: 373).

Por isso, Clarice escancara, as janelas dos sentidos e procura sorver a seiva de um olhar, de um odor, da polifonia de vozes e sons na aporia de ser.

Durante a vida de um cigarro, Clarice mergulha no turbilhão da memória, esgueira-se pelas ruelas do seu Rio, voa até ao coração do longe, lê no olhar dos objectos mensagens e signos, inventa o sabor de palavras novas que logo se comprazem em arquitectar perguntas, perplexidades e linguagens surpreendentes. Regressa à infância e a mesma pergunta que a acompanhou, durante toda a vida, ergue-se perante o olhar perdido na memória da mãe:

-Porque não fui capaz de criar uma história milagrosa que salvasse a minha mãe?

Ou então:

-Que poder evanescente se esconde por detrás dos desenhos das palavras que gosto de inventar, que por isso me pertencem, mas que me fogem?

Noite dentro, imóvel, no terraço do apartamento no Leme Clarice desnuda-se perante os olhos cegos da cidade. A memória chega, mansa, nas volutas do fumo.



Uma infância roubada: a pobreza, a dor e a fuga

Insuficiência do imaginário

Chaya Pinkhasovna nasceu na Ucrânia profunda em 1920, no seio de uma família judia muito pobre e sujeita, como todos os judeus, a métodos segregacionistas. Eram tempos difíceis, aqueles. A 1ª guerra mundial tinha dilacerado aquela região e a Revolução soviética dava os primeiros passos.

Ainda muito pequena, emigrou com os pais para o Brasil, em busca de melhor fortuna.

Aí, a exemplo de outros familiares seus, foi obrigada a mudar de nome e de identidade. Porém, “each man thus appears as the possessor of a rôle, already performed by the ancestors (…), newborn children receive the names of the deceased whose roles, in a sense, they perform again, and  so the community maintains a continuous self-identity “, ( GUSDORF, 1980: 30), e este património ficou para sempre enraizado na alma de Clarice.

“Clarice nasceu numa aldeia perdida no mundo, que nem consta nos mapas, na Ucrânia, aonde ela jamais voltou. Nasceu por acaso, de passagem, com seus olhos ucranianos que parecem folhas sopradas por ventos opostos, para o norte e para o sul.” (Clarice, p. 17).

“Nasci na Ucrânia, terra dos meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando a minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.” (Clarice Lispector, in MOSER, 2010: 9).

Como, já brasileira, em Maceió, no Recife, no Rio de Janeiro, já mulher, pelas ruas do mundo, poderia Clarice desfazer-se do fardo que herdara? Já adulta, evidenciou frequentemente indecisões e imprecisões sobre a sua origem e sobre o local de nascimento, chegando a refugiar-se na mentira. Todos esses sinais comprovam uma vivência existencial perturbadora e incómoda, sempre que era confrontada com o assunto. Dir-se-ia que essa necessidade imperiosa de cortar com o lado obscuro e penoso da sua pequena infância configurava a denegação de uma inelutável perda primigénia que, com teimosa obsessão, procurava colmatar através da reescrita da história do seu nascimento: “Eu estou voltando para o lugar de onde vim. O ideal seria ir até à cidadezinha na Rússia e nascer sob outras circunstâncias.” (in MOSER, op. cit.: 10)

   A mãe, devido à vida miserável, à fome e à violência que sobre ela se abatera na Ucrânia, chegou ao Brasil muito doente e nunca recuperou. Para sobreviver, o pai era obrigado a desempenhar tarefas humilhantes, em função da cultura e da inteligência que possuía.

A família muda para o Recife, quando Clarice tem cinco anos. As condições físicas da mãe agravam-se e a menina assume a responsabilidade de salvá-la, inventando histórias que lhe sussurra ao ouvido, histórias cheias de palavras balsâmicas, salvíficas, no imaginário da autora. Propensa à invenção e à desestruturação da linguagem comum, olha cada termo sob todos os ângulos, materializa-o em objectos que fazem parte do quotidiano, rompe o invólucro opaco das palavras comuns e dos discursos estereotipados, em busca da substância alquímica que haveria de contrariar uma perda iminente.

“- Papai, inventei uma poesia.

- Como é o nome?

-Eu e o Sol. – Sem esperar muito recitou:

-“As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas, mas eu não vi”.

- Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?

Ela olhou-o um segundo. Ele não compreendera…

- O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas…. -. Pausa.

- Posso inventar outra agora mesmo: “Ó sol, vem brincar comigo”. Outra maior:

               

                Vi uma nuvem pequena

                coitada da minhoca

                acho que ela não viu”.
                                                            
(Perto do Coração Selvagem, p. 12)



Muito pequena, Clarice tinha noção da sua incapacidade para ajudar a mãe enferma. As irmãs mais velhas cuidavam dela, mas a menina só podia fazê-lo socorrendo-se do seu dom de criação. Dotada de enorme espírito de religiosidade, Clarice rezava, pedia a Deus que curasse a mãe, inventava pequenas dramatizações que representava, recorrendo a adereços. E todas terminavam, magicamente, com o milagre da cura.

Parafraseando Moser, o poder alquímico do imaginário falhara, mas o pendor para a crença no poder miraculoso das palavras manteve-se:

“Meio século mais tarde, quando Clarice Lispector, ela própria consumida por uma doença terminal, deixou a casa pela última vez, recorreria à mesma táctica. ‘Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris’”. (MOSER, p. 83.).

A primeira perda consuma-se com o desaparecimento da mãe, cuja memória não mais a abandonará, vestida de roupagens, ora doloridas, ora esfusiantes, provocatórias, mentirosas.

A linguagem fora intransitiva, no sentido em que os mundos por ela efabulados, os horizontes de esperança ingénua, desenhados na polifonia dos sons e no traçado certo das palavras brotando como fontes cristalinas e pujantes, solidificou num sofrimento profundo, no prelúdio de uma palavra indizível:

“O que há dentro de Clarice é algo mais forte do que o que ela pode dar ao mundo. O que há dentro dela precisa mais de o mundo lhe ser dado do que o mundo lhe dá.” (Clarice, p. 27).



Tédio e busca incessante do outro lado da linguagem

A perda está intimamente relacionada com o imperativo existencial da satisfação do desejo, pela convicção do sujeito de que a transmutação metafísica do real, através da linguagem, opera a emergência de um sentimento de incompletude que só na «rêverie» encontra o bálsamo redentor.

O misticismo do pensamento de Clarice, a convicção de que um deus ex-máquina corrigiria, de algum modo, os desmandos do inelutável fatum e a fé na ontologia da palavra escrita semeiam a sua obra, consubstanciada em personagens ambivalentes, redondas, antropomórficas.

 Auto-retratos multiformes, autobiografias disfarçadas sob roupagens alheias, ostentação e recolhimento marcam toda a juventude clariceana. Dotada de uma personalidade e de uma inteligência muito fortes, aliadas a uma beleza perturbante, Clarice logo se faz notada, quando chega ao Rio, envolta numa aura de mistério e de surpresa. A voz rouca, o olhar oblíquo e o comportamento pouco adequado para a época chocam, de algum modo, o ambiente carioca, não obstante ter pouco mais de quinze anos.

Aluna distinta, Clarice decide fazer o curso de Direito, não porque quisesse exercer advocacia, mas para reformar as prisões, com confessará anos mais tarde; pela mesma altura, começa a afirmar-se como escritora. Não que fosse fácil, nem que os seus trabalhos fossem fáceis de entender. Aliás, nos meios intelectuais, instalou-se, durante algum tempo, a convicção de que o autor seria um homem.

“Clarice gosta de sentir o ar poeirento, luminoso e estridente da cidade grande. Na cidade grande faz muito barulho para se dormir. Há cinemas, luzes. De repente as luzes se apagam: é o racionamento. Clarice acende velas. Sente-se livre, no escuro, entre milhões de solitários no escuro. À luz da vela, escreve. Livre, solitária, vai pelo caminho da inspiração.” (Clarice, p. 16.)



Por isso, um tédio imenso a habita desde cedo. A aparente inabilidade para se relacionar e conviver, a vertigem do imaginário em contraponto com o real, concorrem para que se refugie no isolamento, no casulo que a inspiração vai tecendo.

 “Clarice nunca foi óbvia. Dava hesitantemente os primeiros passos como escritora, em segredo, ‘criando sua “máscara”, como ela dizia, e com muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma  surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. E a hora da escolha.” (in MOSER: 122).

As duas «Clarices», a Clarice-mulher e a Clarice-escritora», formam duas esfinges, procurando desvendar-se mutuamente e modelar-se uma à outra; mas, contrariamente ao efeito especular do protagonista da autobiografia, o artista e o modelo não coincidem nas descontinuidades espácio-temporais. Por isso, ambas nunca eram óbvias: a literatura era a “vida vivendo” e Clarice-mulher era os outros, a memória e a sua história: “[Seus olhos]  pareciam perscrutar todos os mistérios da vida: profundos, serenos, fixavam-se nas pessoas como se fossem os olhos da consciência. (Olga Borelli, in MOSER, op. cit.: 203).

Entre as duas vidas, os hiatos vão-se sucedendo. Casa com vinte e cinco anos, com um diplomata que a leva pelo mundo. A beleza e a sobriedade de Clarice atraem, mas ela guarda instintivamente uma reserva disfarçada de pose e distanciamento. Em casa, refugia-se na noite, enquanto a cidade desconhecida dorme tranquila. Então, o cigarro vai consumindo, lentamente, a agonia da criação. E Clarice escreve, gemendo. De manhã, já tarde, vai ao terraço e bebe a cidade casa a casa, buscando o alimento que, no silêncio da vigília, haverá de consumir em páginas de vida:

“O coração é selvagem e tem rasgos por onde entra o mundo de fora. (…) O mundo de fora que entra dentro do coração de Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro e nesse jogo labiríntico de fora e de dentro ela cria sua fantasia…” (Clarice:78).



O fascínio do desconhecido da diplomacia estrangeira, quando casou com um diplomata de carreira e com ele viveu diversas e estranhas experiência, começa a esfumar-se, pouco a pouco, com o correr dos anos. Clarice precisa do calor e da luz do Rio, sua cidade de eleição, onde se perde e se encontra. Só em Nova York, junto da família Veríssimo, quebra o gelo do tédio e do desconforto.

Mas o que doía sobremaneira era a dor do exílio.

Surdamente, no veludo das noites mal dormidas, assoladas por uma insónia enganada à força de comprimidos, a náusea da segunda perda vai urdindo a sua teia inexorável. A escrita corre veloz, na vertigem do olhar, no fumo do cigarro. Clarice decide separar-se do marido e voa para o seu Brasil com dois filhos à ilharga. Tem 37 anos.

“Visto agora à distância, o cepticismo acerca do casamento que aparece desde o início da sua carreira, faz com que o fim do seu casamento não seja tão surpreendente como o facto de ter conseguido durar tanto tempo.” (MOSER, id.: 317).

De facto, o seu alter-ego mais autêntico, Joana, personagem central de Perto do Coração Selvagem, confessa que, depois do casamento, “tudo o que você pode fazer é esperar pela morte.

Durante a sua estadia na Europa, Clarice confessa a duplicidade da vida que tem vivido. A máscara que é obrigada a usar, por imposição da condição de mulher de um diplomata, dói terrivelmente e vai destruindo a sua autenticidade. Assume com amargura a superficialidade que a envolve, mima personagens que não conhece, esconde-se sob o manto das palavras gastas, ocas, de circunstância. Mas a alma vai-se esgotando, agonizante.

Arranja um apartamento no Leme:

Ela acha estranho passar de grandes salas de família para o minúsculo apartamento que caberia todo dentro de uma das salas menores. Clarice tem a impressão de voltar às suas verdadeiras proporções. E à liberdade, é claro. Ama e compreende cada vez mais as pessoas, porém sabe que precisa isolar-se delas. O melhor lugar para se distanciar das pessoas é a cidade grande. (Clarice, p. 16.)

O marido, longe, sofre profundamente a separação. Há-de escrever-lhe uma carta profundamente sofrida, pedindo a reconciliação e penitenciando-se pelo involuntário abandono a que a votara, por força dos afazeres profissionais: “Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana, de não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha o direito de esperar de mim.” (in MOSER: 319).

Maury há de esperar por Clarice mais de dez anos. E quando decide refazer a vida na companhia de outra mulher, consuma-se para aquela uma segunda perda. Clarice encara a segunda mulher de Maury como uma invasora que viesse apossar-se de um território que, paradoxalmente, ela considerava como sua propriedade. Os conflitos sucedem-se, a agressividade da escritora toma proporções públicas, o frágil equilíbrio emocional de Clarice fica em carne viva. Finalmente, tem consciência de que o pequeno apartamento do Leme configura a exiguidade da liberdade que pensara ter alcançado: tratava-se de uma «liberdade sitiada», em contraponto com as proporções que o êxito da sua obra ia alcançando.

O cigarro vai descendo, ondulante.



Heteronímia e sobrevivência

Beleza efémera



Clarice dava-se mal com a rotina da vida doméstica. Perdida a qualidade de vida que o casamento lhe proporcionara, o “renascimento” foi doloroso e profundamente agravado pela esquizofrenia do filho mais velho. Para sobreviver, Clarice-escritora desdobra-se numa heteronímia abundante. Retoma a função de jornalista, cria, na «Manchete» um espaço de entrevistas com gente famosa, escreve, sob pseudónimo, para revistas femininas, dá conselhos de beleza, e passeia-se exuberantemente pelos palcos de encontros, colóquios, sessões de lançamento, projectando, sempre altiva, a sua beleza estonteante. A criação literária de Clarice atingira o apogeu, Clarice está em todo o lado, Clarice está sempre ausente, do outro lado do espelho, fixando-se na opacidade do olhar, inspirando palavras, palavras, palavras.

Clarice está cada vez mais só. Na arquitectura da polifonia de vozes encantatórias e evanescentes de contos, romances, crónicas e artigos sobre faits-divers, a escritora reinventa-se e morre, numa labiríntica sucessão de alteridades, de epifanias e abismos:

“Clarice conhece o Rio de Janeiro que ninguém conhece, uma cidade deformada pelo encantamento, uma metrópole transparente, quase invisível, apenas um pressentimento do que poderia ser, se fosse real. Ali, as casas e os edifícios existem para ser olhados, não para ser habitados, porque ‘tudo segue o caminho da inspiração’.

Todos os habitantes do Rio de Clarice são mendigos (ela diz que se sente pior que um mendigo, porque nem mesmo sabe o que pedir). É uma cidade feita de ouro e pedra, que esconde entre as brechas um tesouro. O que é o tesouro do Rio de Janeiro? É preciso olhar bem para encontrá-lo. Está ao alcance dos nossos olhos, mas não de nossas mãos.” (Clarice, p. 12.).

Note-se o olhar singular, irreal e único de uma Clarice impotente, perante o sofrimento alheio, revoltada com as injustiças, mas teimosamente enfrentando o Minotauro esquivo e tortuoso da linguagem, nos labirintos da escrita. Cada partida constitui um ritual iniciático de redenção, perscrutando os sinais confusos do tesouro escondido no coração da cidade, que é, afinal, o seu próprio coração:

É suave a maneira como o mundo de fora se insinua em Clarice. Há constantemente uma disputa entre fora e dentro, que se passa através das janelas.

O mundo de fora chega através de uma janela que se abre, uma brisa, uma folha seca entrevista, um raio de luar que ilumina o peito de um homem, empalidece o quarto, e quando a paisagem é observada ela se torna parte do mundo interior de Clarice.

Os sons são flechas e se cravam nos móveis, nas paredes, no corpo. As árvores são sombras que vigiam secretamente o silêncio do seu quarto. No silêncio do quarto, Clarice se torna menina.” (Clarice: 79).



A primeira infância é o arquétipo perseguido por toda a gente, um momento genial de florescimento do corpo e de abertura ao mundo. A infância é um tempo primordial de dinamismo, de seiva borbulhante de vida, de descoberta e de autenticidade. A infância é pureza, desnudamento, sem máscaras. Na narrativa de vidas, ela apresenta-se como o horizonte de todos os prodígios. Lá, todos os homens e todas as mulheres projectam, envoltos em veludo, sonhos e quimeras. É um tempo em que a alquimia cria o ouro.

Por isso, à medida que o tempo passa, inexorável, Clarice, recusando sempre a autobiografia, metamorfoseia-se em cada personagem que arranca do tesouro escondido sob as pedras da rua e do imaginário, tão real!

Benjamin Moser diz que Clarice Lispector tinha dois vícios: os comprimidos e os cigarros. Serão estes dois ingredientes que irão consumar uma terceira perda – ou antes, duas perdas - que a atirarão definitivamente para uma depressão profunda: perde a beleza do corpo e perde parcialmente a mão direita, a mão criadora, o bem precioso que algum Deus lhe terá dado, o seu “tão certo secretário”.

Em Setembro de 1966, Clarice adormece com o cigarro aceso. As chamas devorar-lhe-ão a mão e largas extensões do corpo. No hospital, onde fica internada por algum tempo, transforma-se numa mulher-dor, mas não perde a aura criadora, porventura mais forte e purificada:

“Quando tiraram os pontos da minha mão operada, por entre os dedos gritei, escreveu Clarice. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.” (in MOSER: 381). 

  

A produção literária vai conhecendo sucessos, no país e no estrangeiro. Não pára de escrever, numa voragem que lhe vai, paulatinamente, consumindo a beleza. A participação em jornais e revistas acentua-se, escreve sobre temas variadíssimos, a família, os filhos, os amigos, a infância, numa linguagem coloquial que os leitores admiram cada vez mais:

Sou tímida mas tenho direito a ter os meus impulsos’, exclamou uma mulher que apareceu à sua porta. ‘O que você escreveu hoje no jornal foi exactamente como eu me sinto; e então eu, que moro defronte de você e assisti o seu incêndio e sei pela luz acesa quando você tem insónia, eu então trouxe um polvo para você.’ (in MOSER: 387).

Durante a ditadura de Costa e Silva, iniciada em 1967, Clarice empenha-se militantemente na luta contra a censura e a repressão cultural. Participa em manifestações e em comícios, subscreve petições e participa em delegações. Uma perda profunda originara uma nova frente de luta pela vida e pela democracia no seu país. Acentua-se, por outro lado, o seu natural pendor misticista e ocultista, exacerbado pelo agravamento da doença do filho Pedro. Consulta um psiquiatra judeu e passa a consultá-lo quase todos dias, durante seis anos. Impõe a si própria um isolamento doentio e mórbido com ao argumento de que ninguém a ama. Toma doses significativas de tranquilizantes  e de antidepressivos.

Clarisse adquire a fama de excêntrica e desadaptada. Já perto do fim, Clarice dedica-se à pintura, enjoada que estava de literatura.

“Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama ‘medo’ eu conseguira pôr para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo pânico de um ser no mundo.” (in MOSER: 474).

O tema da morte, sempre presente em toda a obra da escritora, surge com mais frequência, em declarações públicas e nos escritos. Clarice pressente o fim.

O Outono aproxima-se na ruga de um olhar fugidio, na mão que o fogo transformara em garra cinzenta. Clarisse está cansada de si. As forças esvaem-se, os sentidos esbatem-se, a mão treme.

O cigarro vai caindo, caindo, caindo…



Remate

“A cidade é vista do décimo terceiro andar de um edifício branco revestido de mármore. É madrugada de lua cheia.

Clarice fuma, no parapeito da área de serviço. A área de serviço é um  emaranhado de vidraças, esquadrias, varais, manchas de chuva, janelas contra janelas. Um monstruoso interior de uma máquina de viver.

Clarice joga a ponta do cigarro na cidade. Ela procura a amplidão.” ( Ana Miranda, Clarice)



                                                                                     


segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

PRESENÇA DA MULHER NA POESIA DE JOAQUIM NAMORADO










PRESENÇA DA MULHER NA POESIA DE JOAQUIM NAMORADO



A voz que me dita os versos

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é tua, meu amor, de quanto é nosso,

só porque sentindo-o o partilhamos

destas horas que s e alongam tristes

e doutras que foram e hão ser

da luta, do tormento, da alegria

e da glória de vivê-las plenamente.


                                                                                                                                            (Poesia Necessária)


            Em Joaquim Namorado, poeta neorrealista, a linguagem do imaginário feminino adquire cambiantes que encontram as suas raízes no lirismo da poesia trovadoresca e na lírica camoniana; é recorrente, ainda, a veia irónica e mordaz com que o poeta tantas vezes procurou iludir e causticar a falsa aparência das coisas.

            No entanto, são as raízes de uma estética comprometida com um ato criador verdadeiramente contaminado pelas circunstâncias históricas - que o poeta abraçou e em que militantemente se envolveu - que projetam a mulher, verdadeiramente assumida como parte inteira da humanidade, recusando-lhe, por isso, qualquer tratamento especial que, parecendo exaltá-la, não passasse, afinal, de uma hipócrita exaltação, como veremos nalguns poemas. Aliás, quer no contexto do poema-arma, quer nos que celebram o Amor em toda a sua grandeza, o amor-memória e o amor-futuro do pretérito, é a mulher-humanidade, a amiga, a amante, o recanto acolhedor, a companheira de luta em devir, que avultam de forma indelével na criação poética de Joaquim Namorado.

             

                A metodologia que tentaremos seguir concentrar-se-á no enquadramento poético das obras em análise*, partindo das recorrências e redes de significações que configuram o tema do imaginário feminino do poeta, bem como das metáforas matriciais que transbordem os limites materiais de um livro, contaminando o universo dos outros. Buscam-se as sonoridades, os sentidos expressos e ocultos, o dito, o não-dito e o interdito que constroem o universo polifónico e polis semântico, e configuram o universo feminino do poeta. A perspetiva temática, no caso vertente, realçará os enfoques intratextual e intertextual – pela valorização das repetições dos conteúdos semânticos e dos recursos estilísticos que aí operam e pelo diálogo que o tema estabelece com as outras obras – , e a perspetiva extratextual, no que ela permite detetar a importância, quer do “real”, quer da vivência do autor.



A Mulher-Bálsamo e a Mulher-Humanidade



            Iniciamos esta incursão orientada pela obra do poeta, analisando os sinais que configuram a imagem da mulher que acolhe e conforta e da mulher cidadã do mundo.

         Em Invenção do Poeta (primeira parte de Incomodidade), na dolorosa e contraditória metamorfose por que há de passar, o poeta busca forças na memória longínqua da infância, no ninho protetor do colo materno:

Mãe!...

acaricia, assim, os meus cabelos,

leve, carinhosamente:

deixa que eu sonhe

ser o outro

que nunca mais voltou...

             A invocação da imagem da mãe (acaricia, assim), desse espaço primordial revela, não fundamentalmente a nostalgia de um tempo-espaço de felicidade e de segurança, perdido algures num recanto da memória, mas antes um devir de expressão e um devir do próprio ser íntimo e autêntico. O sujeito poético, dilacerado entre o que ser que foi e o ser em construção, bebe com sofreguidão a seiva retemperadora e inspiradora.

          Ou distancia-se do sonho materno, do projeto de futuro alicerçado numa visão paradisíaca do mundo. Em Transmutação (in Invenção do Poeta), o sujeito poético, outro que não o idealizado, porque falso, confessa:

Minha mãe me talhara outro destino

-para os filhos, as mães sonham vidas

só de sonhos (...)

          Também no incipit de Poesia Necessária, (Quis escrever neste livro um nome do amor), bem como no poema de abertura (a voz que me dita os versos (...) / é tua, meu amor) a invocação do amor e do seu correlato – a mulher – desempenham para o criador o papel simultâneo de âncora e matéria libertadoras, nos plano estético e óntico.

          A mulher-humanidade, parte igual e integrante de todos os povos e de todos os homens, está presente por ausência. Quando o poeta, animado de uma força transformadora e confiante no coração e na generosidade combativa do homem seu irmão, esgrime a palavra num registo épico, futurante e libertador, ou quando desce aos infernos de vidas amputadas e prisioneiras, ou ainda às torres em que se refugiam diletantes e retóricas, a matriz masculina do signo linguístico não exclui o lado feminino, nem o subalterniza. Bem pelo contrário: em Poesia Necessária, as metáforas do sofrimento, da dor e da esperança têm apenas um género, o género humano:

Um menino chora,

sem razão?!...

A mãe limpa com um lenço branco

as lágrimas e chora,

chora porque chora

o seu menino,

sem razão?!...
                                   (Decalque de sete desenhos de Manuel Ribeiro de Pavia)
ou
Canto os homens e as armas

E o sangue derramado e o sangue vivo

Que nas veias corre como um sol cativo

Pronto a dar-se às madrugadas de amanhã.



Também em Incomodidade abundam as marcas deste género humano:

Ó, mocidade, vai para os estádios,

Vai para as oficinas cantando!

Faz da tua vida luta, amor e alegria

                                               (Exortação)

           O poeta, aliás, procura, noutros poemas, afirmar a sua total rejeição por qualquer estética piegas e delirante, que não passa, em seu entender, de um conjunto de exercícios estéreis e de um lirismo bacoco tecido de lugares-comuns, em torno de um amor seco e de uma mulher de papel. Disso são exemplo alguns dos poemas publicados em Incomodidade, com o título Temas Obrigatórios. Para o poeta, trata-se de uma metafísica estafada, divorciada do pulsar da vida, a cheirar a rosas murchas e alimentada por poetas estúpidos, presos a musas rabugentas

Oh, a minha musa queixa-se,

Não amor em delíquios,

Não tremor de mãos,

Não camélias desbotadas,

            ..............................................

                                  (Não)
ou

Se me pedisses a lua,

a lua te daria,

encastoada num milhão de estrelas...

                                   (O delírio é fácil...)

           Todavia, o poeta não restringe a sua veia satírica aos estereótipos desta retórica, tão ao gosto ultrarromântico; desconstrói a aparente seriedade do próprio poema, pela introdução de elementos bizarros e imprevisíveis, com o intuito de sublinhar a sua distanciação relativamente àquela estética e à mulher-objeto. O poema Não termina deste modo:

Oh, a minha musa está impossível,

Só molhos franceses,

Vou a um restaurante barato

Comer arroz e grão

-chiça.

            A vulgaridade e a brejeirice que caracterizam o fiel do poema, mais não pretendem do que ridicularizar o lugar-comum da mulher-musa-inspiradora.

        Talvez o exemplo mais feliz de recusa do drama romântico, do drama amoroso, seja o final do poema Paixão e Fim Dum Tema Romântico, integrado também em Incomodidade, e que glosa o drama shakespeariano de Romeu e Julieta:

Caia o pano de boca

sobre o falso drama,

num ai.

[Sol, electricista]

[Música, maestro]


A Anti-Mulher


            A imagem simbólica que domina o paradigma tradicional da mulher-esposa, da mulher-adorno, submissa, subalterna, superficial e doméstica, o lado mais frágil do ser humano, mas também tocada pela veia satânica e pecaminosa, tem lugar de relevo na criação poética de Joaquim Namorado.

            Numa linguagem primeira, é alvo de sarcasmo e de paródia, linguagem essa que, por seu lado é significante de uma outra que, em profundidade, visa denunciar o ranço e a hipocrisia da moral beata de uma sociedade mal sã, sem ética.

            O paralelismo entre a educação tradicional a que a mulher era submetida e o pendor malévolo para o pecado e a tentação conjugam-se, de modo notável no poema Ultraje ao Pudor, inserido em Incomodidade, na parte intitulada Viagem ao País dos Nefelibatas:

           
As mãos dos escultores te modelaram

nua

os pintores te pintaram

nua

os poetas te cantaram

nua

e os homens te amaram simplesmente

nua...

Mas Satanás vestiu-te

e lá tinha as suas razões...



             Note-se a configuração estrutural do poema, oscilando entre versos mais longos, cortados pela anaforização do vocábulo nua, que marca uma cadência incisiva, assertiva, eivada de uma denúncia contida, mas nem por isso menos presente. Mas, no remate do poema, o verso final, introduz uma paradoxal conivência com a intromissão satânica, a que não é alheio um certo efeito de distanciação, de intenção claramente «paródica», mais do que irónica ou satírica.



            No pequeno poema O Diabo ( in Zoo), há um notável diálogo entre o texto e gravura que o ilustra:

Satan era um anjo...

Não foi por isso que deixei de

                                               acreditar no céu...

            A associação dos substantivos Satan, anjo e céu promove uma interpretação concordante com a doxa: o anjo Satã renegou a sua origem benigna, mas, nem por isso, o céu deixou de existir para os corações piedosos e bons. Porém, a gravura reenvia o leitor para uma realidade outra, transgressora, mas não menos possível: o efeito especular das imagens da mulher e de Satã, indelevelmente associados pela tessitura que vão urdindo, guarnece o céu de um valor duplamente acrescido:


           Ainda na brochura Zoo, onde, como acabamos de ver, o figurativo adquire uma função surreal que anula a aparente vulgaridade do tema (Safari), dando lugar a uma sátira mordaz do real:

A pele do Leopardo

Veste de graça felina

O manequim da moda.

         Imagina-se a beldade desfilando pelas passerelles da inutilidade. Mas a gravura que ilustra o texto, manipula a imagem do real, pela representação do glosado cliché do homem-vítima:

        A função decorativa e superficial reservada à mulher burguesa que mima uma pretensa solidariedade com a pobreza em chás e soirées dançantes (pobrezinhos, sempre houve e há-de haver!) não escapa ao chiste certeiro do poeta:

As senhoras da sociedade

deram um baile a rigor

para vestir a pobreza

e a pobreza horas a fio

cortou, coseu, enfeitou

os vestidos deslumbrantes

que a caridade exibiu

            ..................................

           
            Parece que ainda sobrou

Algum dinheiro para chita

Para vestir a pobreza

....................................
                                               (Caridade, in Viagem ao País dos Nefelibatas)

          Finalmente, uma outra vertente trabalhada pelo poeta é a que retrata o quotidiano cinzento e amargo do desamor, da ausência do amor e do amor-mercadoria que estiolam e secam e seiva da vida e desvirtuam o sentido profundo do Amor.

Em Poesia Necessária, registam-se dois poemas, Auspicioso Enlace e As Solteironas paradigmáticos de não-amor e, por isso, de anti-mulher: a que é transacionada, porventura paradigma da menina prendada, que toca piano para distrair as visitas e para iludir o imenso tédio da vida e a que envelhece só.

Um amor de amar


(Ou a quimera da mulher amada)


Sob uma Bandeira, que não chegou a ver a luz do dia, tem como únicas referências cronológicas de criação os anos de 1976/77. Trata-se seguramente do esboço organizativo de um livro de poemas de recorte estético multifacetado, onde a emoção adquire tonalidades multidimensionais e, como o próprio autor afirma no poema de abertura, a palavra: 

a nós chega
                    liberta
de tudo que na dura lei do tempo morre


Na primeira parte do livro, intitulada Memória Lusíada ou o Transitório Eterno Ainda, surge o poema Incendiado Amor, que, com mestria, dialoga com o poema de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver”, pelas contradições do amor, pela sua variabilidade, pela imagem do poeta sempre a ele preso, sofrido e deleitado. As antíteses, a adjetivação e as hipérboles aproximam os dois poetas, perspetivando o mesmo amor eterno e a mesma imagem de mulher, objeto de amor, também ela vária, mas sempre soberana:

            Incendiado amor

                sob as cinzas do dia fogo aceso

                tão vário e tão igual

                sempre o mesmo

                de tão diferentes amadas sempre preso.

E tão sincero amor


                a elas dado

                sofrido e contente, deslumbrado,

                a todas fiel

                leal e dedicado.

           
            Neste poema, o poeta esboça o cânone estético e conceptual que irá configurar o universo criador em torno do amor e, por contiguidade, da mulher, a quem, aparentemente, confessa fidelidade e lealdade indiscutíveis. Ou, pelo contrário, apenas é fiel e dedicado ao Amor, a um amor vivido como mito, que banha as suas raízes na realidade profunda e faz parte integrante do nosso ser corporal, mas, por isso mesmo, amor vivido, em cada momento, com autenticidade no seu caminho errante e incerto? A ironia latente nos dois últimos versos, relativamente à verdade do amor confessado, pela profusão de adjetivos bem ao gosto dos estafados clichés do discurso amoroso, não introduz uma real distanciação em face do valor de verdade desse mesmo amor? Ou o poeta ironiza tão só a sua própria ironia, num jogo subtil de interditos, convencido que está de que a fidelidade e a lealdade são condições essenciais para a existência deste sentimento maior?

            A forma escorreita e nítida como o poeta desvenda a sua intenção, numa primeira leitura,  optando pela frase curta, contida, semeada de pausas, tece uma linguagem segunda que projeta a busca incessante da verdade de um amor que dê seiva ao lado prosaico da vida, um amor que se renova e cresce, em cada corpo de mulher.

Aliás, o título do corpus em causa, O AMOR DE AMAR-TE (que será publicado em anexo), marca a necessidade premente em materializar a presença feminina, consubstanciada na forma verbal, pela partícula -te e no valor significante das aliterações. Estes efeitos estilísticos potenciam-se, conferindo autenticidade, espessura e valor de verdade ao carácter confessional da mensagem.

A força poética de que a palavra é investida consegue rasgar a casca delida do discurso amoroso convencional, e irrompe nova, fresca, num jogo de sedução que une, a um tempo, o emissor, a mensagem e o leitor.

            Não se trata da imagem da mulher, companheira para toda a vida, antes de um sentimento total e leal, uma entrega que, sendo avessa à constância, se bebe puro, como se fosse o último e o único. O deslumbramento experimentado perante «elas» subentende uma busca incessante e inigualável, tratando-se, em cada nova experiência amorosa, de um rito iniciático. Por isso, o deslumbramento sentido, em face da revelação de uma nova imagem de mulher de que o poeta se apropria, enquanto criação poética de um tempo primordial em que mergulha e se revigora a cada novo encontro.

            E o poema que encerra o corpus, e que partilha com este o título, O Amor de Amar-te, vem reforçar a visão acima expressa:

O amor de amar-te

foi a minha vida


No cabo da vida

amor primeiro.


                Por um lado, a iteração da palavra «vida», no primeiro dístico, significando o ser em devir, em construção, e no segundo, conotando de algum modo a morte que espreita, dimensionam o papel central do amor, que sem cessar renasce, como as células do corpo; por outro lado, o jogo se sentidos entre «cabo» e «primeiro» dialoga com a recorrência do advérbio «sempre» da segunda estrofe do poema Incendiado Amor, sublinhando com veemência a fidelidade ao amor e, simultaneamente, a inevitabilidade da sua inconstância.
            Nesta ordem de ideias, nos versos que constituem o incipit da parte em análise:

Se a maré nos colhe na sua onda louca

E o raio rasga o céu da nossa calma

Não tenhas medo, amiga, escuta

...............................................................

O poeta invoca os elementos – a água e o fogo – na sua relação dinâmica e aparentemente oposta, mas ambos dotados de uma enorme força simbólica: um, a água, fonte de vida, de purificação, de regeneração, e o raio, língua furiosa de fogo que imola mas também purifica, para lhes opor a força maior da palavra que o poeta sussurra ao ouvido da amiga-amada. Intui-se uma imagem de mulher («amiga»), companheira frágil, a quem o sujeito poético promete proteção e conselho através da palavra que «sendo de cada um se faz eterna».

 Mas ao mesmo tempo, não deixa de se poder subentender, a exemplo do papel da mulher na poesia trovadoresca, outro referente: a amiga-amante, simultaneamente, voz e suserana. Nesta aparente contradição, se dirime a conflitualidade entre a imagem da mulher objeto de veneração, de desejo e de proteção (Não tenhas medo, amiga) e uma outra que a envolve numa aura de inacessibilidade, de ausência e de memória, como se, porventura, o amor não fosse mais do que uma saudade: 

Te recorda assim

meu pensamento

nos longos dias de ausência

onde moras.

                               (Voo)

Ou ainda nos poemas:

Guardo

                no mais fundo de mim

do tempo e da distância

            a tua imagem.
                                   (Espelho)

Como a rosa

     No escuro da noite
é só perfume

És

nos longos dias de ausência
só lembrança.

                                   (Saudade)


Note-se a estrutura estrófica dos poemas, a disposição dos versos deste último, onde a métrica se retrai e os espaços se dilatam, sugerindo a emoção a custo contida e a inutilidade do verbo, em face da expressividade dos espaços, onde o silêncio, fugaz como o perfume,  se ergue, numa tentativa de superar o vazio da distância e do tempo e agarrar a rosa, símbolo do amor puro e de regeneração.

Aliás, a mulher, perfume e evanescência, simultaneamente presença e ausência, encontra-se em outros poemas, como se, para ser inteiro, o amor necessitasse da tensão entre o agora-sentido e o antes-vivido, a miragem e o oásis, para poder sorver-se em toda a sua pujança. 

Esta perspetiva de fugacidade do amor surge claramente no poema O Pássaro Azul, metáfora da mitológica fénix.  É curioso notar que o azul conota simultaneamente imaterialidade e inatingibilidade e, conjugada com a palavra pássaro, simboliza felicidade, ao mesmo tempo inacessível e próxima, mas, em todo o caso inatingível, não passando de um mito:

......................................

bordado a matiz

num pano antigo [?]

Entre flores que não murcham

.......................................

Este sentimento de perda e de ilusão, que, de todo o modo, procura confirmar a fidelidade ao amor, é reforçado pela segunda estrofe:
.....................................

O que passou foi a vida

fio de água correndo

no chão dos dias

com um pássaro azul dentro.

No poema Presença, o poeta sublinha de forma iniludível esse universo fugidio, esse horizonte que se dilui na espuma do imaginário. A presença da mulher, tão detalhadamente burilada, tão real, impressiva e incisiva naquele instante, acaba por ser denegada, pela força do deslumbramento causado:

Lembro agora o teu perfil

Tão vário e tão igual em cada hora

Que já nem sei

Se realmente foste tu ou foi miragem

O minuto a cidade e vida o mundo

Em que sempre e nunca te encontrei.

A proximidade do objeto do amor não rima com reciprocidade, nem partilha. Nem mesmo o contacto físico consegue encontrar o norte que haveria de vencer a cortina de indiferença (ou impossibilidade de amar) por parte da mulher.  
            No entanto, à imagem da mulher que escuta, a mulher aparentemente passiva, contrapõe-se
uma outra que, numa alquimia de sensações, se metamorfoseia, metáfora da natureza e dos seus elementos. E o amor adquire plasticidade, o ser perde a sua rigidez, e molda-se ao sabor dos sentidos e do devaneio, numa viagem cósmica, como se pode observar nestes versos do poema Metamorfoses do Amor:

Fez-se ave

fui o céu

.................
Fez-se navio

fiz-me onda

....................

Foi como a haste de trigo

fui o vento que a embala.

........................................

           Este poema consegue finalmente exprimir uma comunhão quase perfeita entre amador e coisa amada, não fosse o sentimento de posse, de domínio (prenúncio de fim) do primeiro sobre a segunda, como, sem ambiguidade, se subentende na última estrofe:

Fez-se flor,

colhi-a.

            O sentimento imanente de busca incessante, de luta pela inevitabilidade do carácter fluido e fugaz do amor, como se, paradoxalmente, apenas fosse totalmente vivido na ausência ou na memória, emerge dos três primeiros poemas que abrem a parte O AMOR DE AMAR-TE.

            Se na maioria da poesia sobre a mulher-amor, o tempo predominante é o pretérito perfeito, simbolizando um passado que reinventa o presente pela memória e pelo imaginário do signo, já em Arabesco, Constelação e As Quimeras, poemas que abrem a parte O AMOR DE AMAR-TE, o lirismo emerge de um desejo, ou de uma quimera, e, por isso, não pode ser satisfeito, porque localizado num não-tempo que, por sua vez, gera um não-espaço. O valor modal do Conjuntivo – e o seu correlato, o Condicional (expresso ou oculto) – deslocam a ação da linearidade temporal, remetendo-a para o paradoxo de um futuro do pretérito, para uma «rêverie»; mas nem por isso a mensagem é menos autêntica.

            É como se o poeta sonhador mistificasse o próprio ato de sonhar e o que nele existe de potencialmente criador. E, pelo ato criador, o eu projeta com autenticidade um mundo de palavras e de imagens onde momentaneamente se refugia. O amor e a sua concretização são uma aporia, de que o poeta tenta desresponsabilizar-se: há uma condição que lhe escapa, e nem mesmo o seu poder demiúrgico é suficiente para dirimir a oposição entre desejo e fruição:

            Fosse  minha alma o arabesco

do tapete

que pisasse

                o teu pé descalço...

                .................................................

                                                               (Arabesco)
                Que a minha mão poisasse

                no joelho macio de Andrómeda

                ...................................................

                                                               (Constelação)
            Fosse o teu império

o meu desejo

e a tua glória

fosse que eu te amasse.

....................................

(As Quimeras)



Esta impossibilidade de concretização do amor é, ao longo dos poemas, caldeada pela assunção de um erotismo e de uma sensualidade que não se encontram facilmente na poética de Joaquim Namorado. É como se o desejo puro e sensual se inflamasse e derrotasse a sua imaterialidade, através da mancha tipográfica em fundo branco. É que estes poemas, são fundamentalmente visuais. A luta entre a miragem e o oásis trava-se perante os olhos do leitor.

 E o olhar do leitor cúmplice vê, de facto, em contraluz, a explosão de um quadro bem real: o Futuro do Pretérito transmudado em Presente Contínuo. E a mão do poeta sobe:
            ..........................

lenta (...)

até lá onde

o puro amor

se enovela e acende.

                                             ( Constelação)
 

             A duplicidade do amor e da mulher, simultaneamente tão longe e tão perto, tão perene e tão fugaz, tão comum e tão inacessível, semeia todos os poemas coligidos em Sob Uma Bandeira. E esta dualidade induz uma dor intrínseca que se desnuda, no poema  A Praia:

Vestida da indiferença

vestida do esquecimento

que finges

..........................................

Ouves distraída as palavras

que te digo

.........................................

As imagens de descrição da mulher, na sua aparente (ou real?) indiferença, a linguagem disfórica, conotando os desencontros e os desenganos do amor,  não são, porém, suficientemente fortes para calar a voz da memória, da vida e do imaginário:

Recordo

ou invento

meu amor o mundo

de sermos um do outro

sem remorso
                                        (O tempo do Amor Feliz)


O rosto da mulher na obra de Joaquim Namorado entretece-se no não-dito, raramente se manifestando em superfície, ao nível da expressão. É a atualização do conteúdo que o enforma e lhe aviva os contornos.

Não será em grande medida a presença da mulher uma ausência ficcionada?



                                                                       Maria Fernanda Campos


(Este texto foi publicado na revista NOVA SÍNTESE)















                                                          



           



           









           









* Constituem o corpus desta análise os poemas que, relacionados com o tema, estão inseridos em Incomodidade, Poesia Necessária, Zoo e no projecto de livro Sob uma Bandeira que não chegou a ver a luz do dia e onde se encontra uma parte totalmente constituída por poemas de amor inéditos.