UM CIGARRO CAI
RECORTES DA VIDA DE
CLARICE LISPECTOR
Nota prévia
Este
trabalho propõe-se detetar alguns traços significativos da biografia de Clarice
Lispector.
Trata-se de uma leitura temática, orientada
pela isotopia da perda, para cuja
conformação concorrem, não só a ficção, mas também dados de natureza
biográfica.
Do
ponto de vista metodológico, selecionaram-se três períodos da vida da escritora
– a infância, a separação conjugal e o incêndio que a mutilou; cruzaram-se os textos
ficcionais e o estudo documental, retirando a substância suscetível de
sustentar uma leitura pessoal, mas não anti-histórica, nem marcadamente
subjetivista.
Clarice
Clarice
Veio
de um mistério.
Partiu
para outro.
Ficamos
sem saber a
essência
do mistério.
Ou
o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Carlos
Drummond de Andrade
Da
abundante produção literária de Clarice Lispector, espalhada pelos mais diferentes géneros e subgéneros, não faz parte qualquer autobiografia. No
entanto, é consensual que a escritora, durante toda a sua vida, não fez outra
coisa senão “escrever-se”, numa prosa vibrante, estranha, caldeada de silêncios
e de busca. O carácter reflexivo do seu temperamento, bem como a constante
voracidade pela vida, que bebia até à dor, constituíram uma obsessão, uma
interrogação permanente sobre o sentido da existência e sobre a alma das
coisas.
Outros,
escritores, críticos, estudiosos procuram plasmar nos seus textos a
“autobiografia” que Clarice foi arquitetando, desde menina, nos pequenos contos
recusados por incompreensíveis, nas histórias inventadas para alegrar o pai e
as irmãs, nas heteronímias de que se disfarçou, nas personagens cinzeladas como
carne, nos efeitos especulares de uma poética oblíqua.
A
escritora Ana Miranda ficcionou, de modo muito feliz, um “auto-retrato” onde a
autora porventura se reconheceria, se o pudesse ter feito. Clarice, publicado em 1999, vem, parafraseando Jorge Semprun,
através do imaginário, tornar a realidade mais real. Sem escamotear que se
trata de uma obra ficcional, a escritora traz-nos uma personagem que a cada
momento poderia ser encontrada, feita pessoa, em qualquer lugar do imenso Rio
de Janeiro.
Por outro lado, a estruturação da mancha
tipográfica – reduzida e envolta no silêncio da folha – incita o leitor à busca
de informação biográfica e bibliográfica suscetível de preencher as lacunas e
as omissões, para o que dispõe da obra de Moser. Aliás, Clarice há de
transformar a sua vida numa busca incessante de si própria, como se, por
alquimia secreta de um deus perverso, lhe fosse imposta, como redenção, a
construção do puzzle existencial, cujas peças teria de buscar nos e com os
outros:
“Eu
antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então
que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria
ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.” (in MOSER, 2010: 373).
Por
isso, Clarice escancara, as janelas dos sentidos e procura sorver a seiva de um
olhar, de um odor, da polifonia de vozes e sons na aporia de ser.
Durante
a vida de um cigarro, Clarice mergulha no turbilhão da memória, esgueira-se
pelas ruelas do seu Rio, voa até ao coração do longe, lê no olhar dos objectos
mensagens e signos, inventa o sabor de palavras novas que logo se comprazem em
arquitectar perguntas, perplexidades e linguagens surpreendentes. Regressa à
infância e a mesma pergunta que a acompanhou, durante toda a vida, ergue-se
perante o olhar perdido na memória da mãe:
-Porque
não fui capaz de criar uma história milagrosa que salvasse a minha mãe?
Ou
então:
-Que
poder evanescente se esconde por detrás dos desenhos das palavras que gosto de
inventar, que por isso me pertencem, mas que me fogem?
Noite
dentro, imóvel, no terraço do apartamento no Leme Clarice desnuda-se perante os
olhos cegos da cidade. A memória chega, mansa, nas volutas do fumo.
Uma infância roubada: a
pobreza, a dor e a fuga
Insuficiência do imaginário
Chaya
Pinkhasovna nasceu na Ucrânia profunda em 1920, no seio de uma família judia
muito pobre e sujeita, como todos os judeus, a métodos segregacionistas. Eram
tempos difíceis, aqueles. A 1ª guerra mundial tinha dilacerado aquela região e
a Revolução soviética dava os primeiros passos.
Ainda
muito pequena, emigrou com os pais para o Brasil, em busca de melhor fortuna.
Aí,
a exemplo de outros familiares seus, foi obrigada a mudar de nome e de
identidade. Porém, “each man thus
appears as the possessor of a rôle, already performed by the ancestors (…),
newborn children receive the names of the deceased whose roles, in a sense,
they perform again, and so the community
maintains a continuous self-identity “, ( GUSDORF, 1980: 30), e este património
ficou para sempre enraizado na alma de Clarice.
“Clarice
nasceu numa aldeia perdida no mundo, que nem consta nos mapas, na Ucrânia,
aonde ela jamais voltou. Nasceu por acaso, de passagem, com seus olhos
ucranianos que parecem folhas sopradas por ventos opostos, para o norte e para
o sul.” (Clarice, p. 17).
“Nasci
na Ucrânia, terra dos meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchechelnik, que não
figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando a minha mãe estava
grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou
Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer, e
prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.”
(Clarice Lispector, in MOSER, 2010:
9).
Como, já brasileira, em Maceió, no Recife, no
Rio de Janeiro, já mulher, pelas ruas do mundo, poderia Clarice desfazer-se do
fardo que herdara? Já adulta, evidenciou frequentemente indecisões e
imprecisões sobre a sua origem e sobre o local de nascimento, chegando a
refugiar-se na mentira. Todos esses sinais comprovam uma vivência existencial
perturbadora e incómoda, sempre que era confrontada com o assunto. Dir-se-ia
que essa necessidade imperiosa de cortar com o lado obscuro e penoso da sua
pequena infância configurava a denegação de uma inelutável perda primigénia
que, com teimosa obsessão, procurava colmatar através da reescrita da história
do seu nascimento: “Eu estou voltando para o lugar de onde vim.
O ideal seria ir até à cidadezinha na Rússia e nascer sob outras
circunstâncias.” (in MOSER, op. cit.:
10)
A
mãe, devido à vida miserável, à fome e à violência que sobre ela se abatera na
Ucrânia, chegou ao Brasil muito doente e nunca recuperou. Para sobreviver, o
pai era obrigado a desempenhar tarefas humilhantes, em função da cultura e da
inteligência que possuía.
A família muda para o Recife, quando Clarice
tem cinco anos. As condições físicas da mãe agravam-se e a menina assume a
responsabilidade de salvá-la, inventando histórias que lhe sussurra ao ouvido,
histórias cheias de palavras balsâmicas, salvíficas, no imaginário da autora.
Propensa à invenção e à desestruturação da linguagem comum, olha cada termo sob
todos os ângulos, materializa-o em objectos que fazem parte do quotidiano,
rompe o invólucro opaco das palavras comuns e dos discursos estereotipados, em
busca da substância alquímica que haveria de contrariar uma perda iminente.
“- Papai, inventei
uma poesia.
- Como é o nome?
-Eu e o Sol. – Sem
esperar muito recitou:
-“As galinhas que
estão no quintal já comeram duas minhocas, mas eu não vi”.
- Sim? Que é que você
e o sol têm a ver com a poesia?
Ela olhou-o um
segundo. Ele não compreendera…
- O sol está em cima
das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas…. -. Pausa.
- Posso inventar
outra agora mesmo: “Ó sol, vem brincar comigo”. Outra maior:
Vi uma nuvem pequena
coitada da minhoca
acho que ela não viu”.
(Perto do Coração Selvagem, p. 12)
Muito pequena, Clarice tinha
noção da sua incapacidade para ajudar a mãe enferma. As irmãs mais velhas
cuidavam dela, mas a menina só podia fazê-lo socorrendo-se do seu dom de
criação. Dotada de enorme espírito de religiosidade, Clarice rezava, pedia a
Deus que curasse a mãe, inventava pequenas dramatizações que representava,
recorrendo a adereços. E todas terminavam, magicamente, com o milagre da cura.
Parafraseando Moser, o poder
alquímico do imaginário falhara, mas o pendor para a crença no poder miraculoso
das palavras manteve-se:
“Meio
século mais tarde, quando Clarice Lispector, ela própria consumida por uma
doença terminal, deixou a casa pela última vez, recorreria à mesma táctica. ‘Faz de conta que a gente não está indo para
o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris’”.
(MOSER, p. 83.).
A primeira perda consuma-se com o
desaparecimento da mãe, cuja memória não mais a abandonará, vestida de
roupagens, ora doloridas, ora esfusiantes, provocatórias, mentirosas.
A linguagem fora intransitiva, no sentido em que
os mundos por ela efabulados, os horizontes de esperança ingénua, desenhados na
polifonia dos sons e no traçado certo das palavras brotando como fontes
cristalinas e pujantes, solidificou num sofrimento profundo, no prelúdio de uma
palavra indizível:
“O
que há dentro de Clarice é algo mais forte do que o que ela pode dar ao mundo.
O que há dentro dela precisa mais de o mundo lhe ser dado do que o mundo lhe
dá.” (Clarice, p. 27).
Tédio
e busca incessante do outro lado da linguagem
A perda está intimamente relacionada com o
imperativo existencial da satisfação do desejo, pela convicção do sujeito de
que a transmutação metafísica do real, através da linguagem, opera a emergência
de um sentimento de incompletude que só na «rêverie» encontra o bálsamo redentor.
O misticismo do pensamento de Clarice, a
convicção de que um deus ex-máquina corrigiria, de algum modo, os desmandos do
inelutável fatum e a fé na ontologia
da palavra escrita semeiam a sua obra, consubstanciada em personagens
ambivalentes, redondas, antropomórficas.
Auto-retratos multiformes, autobiografias
disfarçadas sob roupagens alheias, ostentação e recolhimento marcam toda a
juventude clariceana. Dotada de uma personalidade e de uma inteligência muito
fortes, aliadas a uma beleza perturbante, Clarice logo se faz notada, quando
chega ao Rio, envolta numa aura de mistério e de surpresa. A voz rouca, o olhar
oblíquo e o comportamento pouco adequado para a época chocam, de algum modo, o
ambiente carioca, não obstante ter pouco mais de quinze anos.
Aluna distinta, Clarice decide fazer o curso
de Direito, não porque quisesse exercer advocacia, mas para reformar as
prisões, com confessará anos mais tarde; pela mesma altura, começa a afirmar-se
como escritora. Não que fosse fácil, nem que os seus trabalhos fossem fáceis de
entender. Aliás, nos meios intelectuais, instalou-se, durante algum tempo, a
convicção de que o autor seria um homem.
“Clarice
gosta de sentir o ar poeirento, luminoso e estridente da cidade grande. Na
cidade grande faz muito barulho para se dormir. Há cinemas, luzes. De repente
as luzes se apagam: é o racionamento. Clarice acende velas. Sente-se livre, no
escuro, entre milhões de solitários no escuro. À luz da vela, escreve. Livre,
solitária, vai pelo caminho da inspiração.” (Clarice, p. 16.)
Por isso, um tédio imenso a
habita desde cedo. A aparente inabilidade para se relacionar e conviver, a
vertigem do imaginário em contraponto com o real, concorrem para que se refugie
no isolamento, no casulo que a inspiração vai tecendo.
“Clarice
nunca foi óbvia. Dava hesitantemente os primeiros passos como escritora, em
segredo, ‘criando sua “máscara”, como
ela dizia, e com muita dor. Porque saber
que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma surpresa amedrontadora. É a liberdade
horrível de não ser. E a hora da escolha.” (in MOSER: 122).
As duas «Clarices», a
Clarice-mulher e a Clarice-escritora», formam duas esfinges, procurando
desvendar-se mutuamente e modelar-se uma à outra; mas, contrariamente ao efeito
especular do protagonista da autobiografia, o artista e o modelo não coincidem
nas descontinuidades espácio-temporais. Por isso, ambas nunca eram óbvias: a
literatura era a “vida vivendo” e Clarice-mulher era os outros, a memória e a
sua história: “[Seus olhos] pareciam perscrutar todos os mistérios da
vida: profundos, serenos, fixavam-se nas pessoas como se fossem os olhos da
consciência. (Olga Borelli, in
MOSER, op. cit.: 203).
Entre as duas vidas, os
hiatos vão-se sucedendo. Casa com vinte e cinco anos, com um diplomata que a
leva pelo mundo. A beleza e a sobriedade de Clarice atraem, mas ela guarda
instintivamente uma reserva disfarçada de pose e distanciamento. Em casa,
refugia-se na noite, enquanto a cidade desconhecida dorme tranquila. Então, o
cigarro vai consumindo, lentamente, a agonia da criação. E Clarice escreve,
gemendo. De manhã, já tarde, vai ao terraço e bebe a cidade casa a casa,
buscando o alimento que, no silêncio da vigília, haverá de consumir em páginas
de vida:
“O coração é selvagem e tem rasgos por onde
entra o mundo de fora. (…) O mundo de fora que entra dentro do coração de
Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro e nesse jogo labiríntico de
fora e de dentro ela cria sua fantasia…” (Clarice:78).
O fascínio do desconhecido
da diplomacia estrangeira, quando casou com um diplomata de carreira e com ele
viveu diversas e estranhas experiência, começa a esfumar-se, pouco a pouco, com
o correr dos anos. Clarice precisa do calor e da luz do Rio, sua cidade de
eleição, onde se perde e se encontra. Só em Nova York, junto da família
Veríssimo, quebra o gelo do tédio e do desconforto.
Mas o que doía sobremaneira
era a dor do exílio.
Surdamente, no veludo das
noites mal dormidas, assoladas por uma insónia enganada à força de comprimidos,
a náusea da segunda perda vai urdindo a sua teia inexorável. A escrita corre
veloz, na vertigem do olhar, no fumo do cigarro. Clarice decide separar-se do
marido e voa para o seu Brasil com dois filhos à ilharga. Tem 37 anos.
“Visto agora à distância, o cepticismo acerca
do casamento que aparece desde o início da sua carreira, faz com que o fim do
seu casamento não seja tão surpreendente como o facto de ter conseguido durar
tanto tempo.” (MOSER, id.: 317).
De facto, o seu alter-ego
mais autêntico, Joana, personagem central de Perto do Coração Selvagem, confessa que, depois do casamento, “tudo o que você pode fazer é esperar pela
morte.”
Durante a sua estadia na
Europa, Clarice confessa a duplicidade da vida que tem vivido. A máscara que é
obrigada a usar, por imposição da condição de mulher de um diplomata, dói
terrivelmente e vai destruindo a sua autenticidade. Assume com amargura a
superficialidade que a envolve, mima personagens que não conhece, esconde-se
sob o manto das palavras gastas, ocas, de circunstância. Mas a alma vai-se
esgotando, agonizante.
Arranja um apartamento no
Leme:
Ela acha estranho passar de grandes salas de família para
o minúsculo apartamento que caberia todo dentro de uma das salas menores.
Clarice tem a impressão de voltar às suas verdadeiras proporções. E à
liberdade, é claro. Ama e compreende cada vez mais as pessoas, porém sabe que
precisa isolar-se delas. O melhor lugar para se distanciar das pessoas é a
cidade grande. (Clarice, p. 16.)
O marido, longe, sofre
profundamente a separação. Há-de escrever-lhe uma carta profundamente sofrida,
pedindo a reconciliação e penitenciando-se pelo involuntário abandono a que a
votara, por força dos afazeres profissionais: “Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana, de
não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha o direito de esperar de
mim.” (in MOSER: 319).
Maury há de esperar por
Clarice mais de dez anos. E quando decide refazer a vida na companhia de outra
mulher, consuma-se para aquela uma segunda perda. Clarice encara a segunda
mulher de Maury como uma invasora que viesse apossar-se de um território que,
paradoxalmente, ela considerava como sua propriedade. Os conflitos sucedem-se,
a agressividade da escritora toma proporções públicas, o frágil equilíbrio
emocional de Clarice fica em carne viva. Finalmente, tem consciência de que o
pequeno apartamento do Leme configura a exiguidade da liberdade que pensara ter
alcançado: tratava-se de uma «liberdade sitiada», em contraponto com as
proporções que o êxito da sua obra ia alcançando.
O cigarro vai descendo,
ondulante.
Heteronímia
e sobrevivência
Beleza
efémera
Clarice dava-se mal com a
rotina da vida doméstica. Perdida a qualidade de vida que o casamento lhe
proporcionara, o “renascimento” foi doloroso e profundamente agravado pela
esquizofrenia do filho mais velho. Para sobreviver, Clarice-escritora desdobra-se
numa heteronímia abundante. Retoma a função de jornalista, cria, na «Manchete»
um espaço de entrevistas com gente famosa, escreve, sob pseudónimo, para
revistas femininas, dá conselhos de beleza, e passeia-se exuberantemente pelos
palcos de encontros, colóquios, sessões de lançamento, projectando, sempre
altiva, a sua beleza estonteante. A criação literária de Clarice atingira o
apogeu, Clarice está em todo o lado, Clarice está sempre ausente, do outro lado
do espelho, fixando-se na opacidade do olhar, inspirando palavras, palavras,
palavras.
Clarice está cada vez mais
só. Na arquitectura da polifonia de vozes encantatórias e evanescentes de
contos, romances, crónicas e artigos sobre faits-divers,
a escritora reinventa-se e morre, numa labiríntica sucessão de alteridades, de
epifanias e abismos:
“Clarice conhece o Rio de Janeiro que ninguém conhece,
uma cidade deformada pelo encantamento, uma metrópole transparente, quase
invisível, apenas um pressentimento do que poderia ser, se fosse real. Ali, as
casas e os edifícios existem para ser olhados, não para ser habitados, porque
‘tudo segue o caminho da inspiração’.
Todos os habitantes do Rio de Clarice são mendigos (ela
diz que se sente pior que um mendigo, porque nem mesmo sabe o que pedir). É uma
cidade feita de ouro e pedra, que esconde entre as brechas um tesouro. O que é
o tesouro do Rio de Janeiro? É preciso olhar bem para encontrá-lo. Está ao
alcance dos nossos olhos, mas não de nossas mãos.” (Clarice, p. 12.).
Note-se o olhar singular,
irreal e único de uma Clarice impotente, perante o sofrimento alheio, revoltada
com as injustiças, mas teimosamente enfrentando o Minotauro esquivo e tortuoso
da linguagem, nos labirintos da escrita. Cada partida constitui um ritual
iniciático de redenção, perscrutando os sinais confusos do tesouro escondido no
coração da cidade, que é, afinal, o seu próprio coração:
É suave a maneira como o mundo de fora se insinua em
Clarice. Há constantemente uma disputa entre fora e dentro, que se passa
através das janelas.
O mundo de fora chega através de uma janela que se abre,
uma brisa, uma folha seca entrevista, um raio de luar que ilumina o peito de um
homem, empalidece o quarto, e quando a paisagem é observada ela se torna parte
do mundo interior de Clarice.
Os sons são flechas e se cravam nos móveis, nas paredes,
no corpo. As árvores são sombras que vigiam secretamente o silêncio do seu
quarto. No silêncio do quarto, Clarice se torna menina.” (Clarice: 79).
A primeira infância é o
arquétipo perseguido por toda a gente, um momento genial de florescimento do
corpo e de abertura ao mundo. A infância é um tempo primordial de dinamismo, de
seiva borbulhante de vida, de descoberta e de autenticidade. A infância é
pureza, desnudamento, sem máscaras. Na narrativa de vidas, ela apresenta-se
como o horizonte de todos os prodígios. Lá, todos os homens e todas as mulheres
projectam, envoltos em veludo, sonhos e quimeras. É um tempo em que a alquimia
cria o ouro.
Por isso, à medida que o
tempo passa, inexorável, Clarice, recusando sempre a autobiografia,
metamorfoseia-se em cada personagem que arranca do tesouro escondido sob as
pedras da rua e do imaginário, tão real!
Benjamin Moser diz que
Clarice Lispector tinha dois vícios: os comprimidos e os cigarros. Serão estes
dois ingredientes que irão consumar uma terceira perda – ou antes, duas perdas
- que a atirarão definitivamente para uma depressão profunda: perde a beleza do
corpo e perde parcialmente a mão direita, a mão criadora, o bem precioso que
algum Deus lhe terá dado, o seu “tão certo secretário”.
Em Setembro de 1966, Clarice
adormece com o cigarro aceso. As chamas devorar-lhe-ão a mão e largas extensões
do corpo. No hospital, onde fica internada por algum tempo, transforma-se numa
mulher-dor, mas não perde a aura criadora, porventura mais forte e purificada:
“Quando tiraram os pontos da minha mão
operada, por entre os dedos gritei, escreveu Clarice. Dei gritos de dor, e de
cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui
tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo
futuro gritei, meu Deus.” (in MOSER:
381).
A produção literária vai
conhecendo sucessos, no país e no estrangeiro. Não pára de escrever, numa
voragem que lhe vai, paulatinamente, consumindo a beleza. A participação em
jornais e revistas acentua-se, escreve sobre temas variadíssimos, a família, os
filhos, os amigos, a infância, numa linguagem coloquial que os leitores admiram
cada vez mais:
‘Sou
tímida mas tenho direito a ter os meus impulsos’, exclamou uma mulher que
apareceu à sua porta. ‘O que você
escreveu hoje no jornal foi exactamente como eu me sinto; e então eu, que moro
defronte de você e assisti o seu incêndio e sei pela luz acesa quando você tem
insónia, eu então trouxe um polvo para você.’ (in MOSER: 387).
Durante a ditadura de Costa
e Silva, iniciada em 1967, Clarice empenha-se militantemente na luta contra a
censura e a repressão cultural. Participa em manifestações e em comícios,
subscreve petições e participa em delegações. Uma perda profunda originara uma
nova frente de luta pela vida e pela democracia no seu país. Acentua-se, por
outro lado, o seu natural pendor misticista e ocultista, exacerbado pelo
agravamento da doença do filho Pedro. Consulta um psiquiatra judeu e passa a
consultá-lo quase todos dias, durante seis anos. Impõe a si própria um
isolamento doentio e mórbido com ao argumento de que ninguém a ama. Toma doses
significativas de tranquilizantes e de
antidepressivos.
Clarisse adquire a fama de
excêntrica e desadaptada. Já perto do fim, Clarice dedica-se à pintura, enjoada
que estava de literatura.
“Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar
porque me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama ‘medo’ eu
conseguira pôr para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo pânico
de um ser no mundo.” (in MOSER: 474).
O tema da morte, sempre
presente em toda a obra da escritora, surge com mais frequência, em declarações
públicas e nos escritos. Clarice pressente o fim.
O Outono aproxima-se na ruga
de um olhar fugidio, na mão que o fogo transformara em garra cinzenta. Clarisse
está cansada de si. As forças esvaem-se, os sentidos esbatem-se, a mão treme.
O cigarro vai caindo,
caindo, caindo…
Remate
“A cidade é vista do décimo
terceiro andar de um edifício branco revestido de mármore. É madrugada de lua
cheia.
Clarice fuma, no parapeito
da área de serviço. A área de serviço é um
emaranhado de vidraças, esquadrias, varais, manchas de chuva, janelas
contra janelas. Um monstruoso interior de uma máquina de viver.
Clarice joga a ponta do
cigarro na cidade. Ela procura a amplidão.” ( Ana Miranda, Clarice)