segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

PRESENÇA DA MULHER NA POESIA DE JOAQUIM NAMORADO










PRESENÇA DA MULHER NA POESIA DE JOAQUIM NAMORADO



A voz que me dita os versos

..............................................

é tua, meu amor, de quanto é nosso,

só porque sentindo-o o partilhamos

destas horas que s e alongam tristes

e doutras que foram e hão ser

da luta, do tormento, da alegria

e da glória de vivê-las plenamente.


                                                                                                                                            (Poesia Necessária)


            Em Joaquim Namorado, poeta neorrealista, a linguagem do imaginário feminino adquire cambiantes que encontram as suas raízes no lirismo da poesia trovadoresca e na lírica camoniana; é recorrente, ainda, a veia irónica e mordaz com que o poeta tantas vezes procurou iludir e causticar a falsa aparência das coisas.

            No entanto, são as raízes de uma estética comprometida com um ato criador verdadeiramente contaminado pelas circunstâncias históricas - que o poeta abraçou e em que militantemente se envolveu - que projetam a mulher, verdadeiramente assumida como parte inteira da humanidade, recusando-lhe, por isso, qualquer tratamento especial que, parecendo exaltá-la, não passasse, afinal, de uma hipócrita exaltação, como veremos nalguns poemas. Aliás, quer no contexto do poema-arma, quer nos que celebram o Amor em toda a sua grandeza, o amor-memória e o amor-futuro do pretérito, é a mulher-humanidade, a amiga, a amante, o recanto acolhedor, a companheira de luta em devir, que avultam de forma indelével na criação poética de Joaquim Namorado.

             

                A metodologia que tentaremos seguir concentrar-se-á no enquadramento poético das obras em análise*, partindo das recorrências e redes de significações que configuram o tema do imaginário feminino do poeta, bem como das metáforas matriciais que transbordem os limites materiais de um livro, contaminando o universo dos outros. Buscam-se as sonoridades, os sentidos expressos e ocultos, o dito, o não-dito e o interdito que constroem o universo polifónico e polis semântico, e configuram o universo feminino do poeta. A perspetiva temática, no caso vertente, realçará os enfoques intratextual e intertextual – pela valorização das repetições dos conteúdos semânticos e dos recursos estilísticos que aí operam e pelo diálogo que o tema estabelece com as outras obras – , e a perspetiva extratextual, no que ela permite detetar a importância, quer do “real”, quer da vivência do autor.



A Mulher-Bálsamo e a Mulher-Humanidade



            Iniciamos esta incursão orientada pela obra do poeta, analisando os sinais que configuram a imagem da mulher que acolhe e conforta e da mulher cidadã do mundo.

         Em Invenção do Poeta (primeira parte de Incomodidade), na dolorosa e contraditória metamorfose por que há de passar, o poeta busca forças na memória longínqua da infância, no ninho protetor do colo materno:

Mãe!...

acaricia, assim, os meus cabelos,

leve, carinhosamente:

deixa que eu sonhe

ser o outro

que nunca mais voltou...

             A invocação da imagem da mãe (acaricia, assim), desse espaço primordial revela, não fundamentalmente a nostalgia de um tempo-espaço de felicidade e de segurança, perdido algures num recanto da memória, mas antes um devir de expressão e um devir do próprio ser íntimo e autêntico. O sujeito poético, dilacerado entre o que ser que foi e o ser em construção, bebe com sofreguidão a seiva retemperadora e inspiradora.

          Ou distancia-se do sonho materno, do projeto de futuro alicerçado numa visão paradisíaca do mundo. Em Transmutação (in Invenção do Poeta), o sujeito poético, outro que não o idealizado, porque falso, confessa:

Minha mãe me talhara outro destino

-para os filhos, as mães sonham vidas

só de sonhos (...)

          Também no incipit de Poesia Necessária, (Quis escrever neste livro um nome do amor), bem como no poema de abertura (a voz que me dita os versos (...) / é tua, meu amor) a invocação do amor e do seu correlato – a mulher – desempenham para o criador o papel simultâneo de âncora e matéria libertadoras, nos plano estético e óntico.

          A mulher-humanidade, parte igual e integrante de todos os povos e de todos os homens, está presente por ausência. Quando o poeta, animado de uma força transformadora e confiante no coração e na generosidade combativa do homem seu irmão, esgrime a palavra num registo épico, futurante e libertador, ou quando desce aos infernos de vidas amputadas e prisioneiras, ou ainda às torres em que se refugiam diletantes e retóricas, a matriz masculina do signo linguístico não exclui o lado feminino, nem o subalterniza. Bem pelo contrário: em Poesia Necessária, as metáforas do sofrimento, da dor e da esperança têm apenas um género, o género humano:

Um menino chora,

sem razão?!...

A mãe limpa com um lenço branco

as lágrimas e chora,

chora porque chora

o seu menino,

sem razão?!...
                                   (Decalque de sete desenhos de Manuel Ribeiro de Pavia)
ou
Canto os homens e as armas

E o sangue derramado e o sangue vivo

Que nas veias corre como um sol cativo

Pronto a dar-se às madrugadas de amanhã.



Também em Incomodidade abundam as marcas deste género humano:

Ó, mocidade, vai para os estádios,

Vai para as oficinas cantando!

Faz da tua vida luta, amor e alegria

                                               (Exortação)

           O poeta, aliás, procura, noutros poemas, afirmar a sua total rejeição por qualquer estética piegas e delirante, que não passa, em seu entender, de um conjunto de exercícios estéreis e de um lirismo bacoco tecido de lugares-comuns, em torno de um amor seco e de uma mulher de papel. Disso são exemplo alguns dos poemas publicados em Incomodidade, com o título Temas Obrigatórios. Para o poeta, trata-se de uma metafísica estafada, divorciada do pulsar da vida, a cheirar a rosas murchas e alimentada por poetas estúpidos, presos a musas rabugentas

Oh, a minha musa queixa-se,

Não amor em delíquios,

Não tremor de mãos,

Não camélias desbotadas,

            ..............................................

                                  (Não)
ou

Se me pedisses a lua,

a lua te daria,

encastoada num milhão de estrelas...

                                   (O delírio é fácil...)

           Todavia, o poeta não restringe a sua veia satírica aos estereótipos desta retórica, tão ao gosto ultrarromântico; desconstrói a aparente seriedade do próprio poema, pela introdução de elementos bizarros e imprevisíveis, com o intuito de sublinhar a sua distanciação relativamente àquela estética e à mulher-objeto. O poema Não termina deste modo:

Oh, a minha musa está impossível,

Só molhos franceses,

Vou a um restaurante barato

Comer arroz e grão

-chiça.

            A vulgaridade e a brejeirice que caracterizam o fiel do poema, mais não pretendem do que ridicularizar o lugar-comum da mulher-musa-inspiradora.

        Talvez o exemplo mais feliz de recusa do drama romântico, do drama amoroso, seja o final do poema Paixão e Fim Dum Tema Romântico, integrado também em Incomodidade, e que glosa o drama shakespeariano de Romeu e Julieta:

Caia o pano de boca

sobre o falso drama,

num ai.

[Sol, electricista]

[Música, maestro]


A Anti-Mulher


            A imagem simbólica que domina o paradigma tradicional da mulher-esposa, da mulher-adorno, submissa, subalterna, superficial e doméstica, o lado mais frágil do ser humano, mas também tocada pela veia satânica e pecaminosa, tem lugar de relevo na criação poética de Joaquim Namorado.

            Numa linguagem primeira, é alvo de sarcasmo e de paródia, linguagem essa que, por seu lado é significante de uma outra que, em profundidade, visa denunciar o ranço e a hipocrisia da moral beata de uma sociedade mal sã, sem ética.

            O paralelismo entre a educação tradicional a que a mulher era submetida e o pendor malévolo para o pecado e a tentação conjugam-se, de modo notável no poema Ultraje ao Pudor, inserido em Incomodidade, na parte intitulada Viagem ao País dos Nefelibatas:

           
As mãos dos escultores te modelaram

nua

os pintores te pintaram

nua

os poetas te cantaram

nua

e os homens te amaram simplesmente

nua...

Mas Satanás vestiu-te

e lá tinha as suas razões...



             Note-se a configuração estrutural do poema, oscilando entre versos mais longos, cortados pela anaforização do vocábulo nua, que marca uma cadência incisiva, assertiva, eivada de uma denúncia contida, mas nem por isso menos presente. Mas, no remate do poema, o verso final, introduz uma paradoxal conivência com a intromissão satânica, a que não é alheio um certo efeito de distanciação, de intenção claramente «paródica», mais do que irónica ou satírica.



            No pequeno poema O Diabo ( in Zoo), há um notável diálogo entre o texto e gravura que o ilustra:

Satan era um anjo...

Não foi por isso que deixei de

                                               acreditar no céu...

            A associação dos substantivos Satan, anjo e céu promove uma interpretação concordante com a doxa: o anjo Satã renegou a sua origem benigna, mas, nem por isso, o céu deixou de existir para os corações piedosos e bons. Porém, a gravura reenvia o leitor para uma realidade outra, transgressora, mas não menos possível: o efeito especular das imagens da mulher e de Satã, indelevelmente associados pela tessitura que vão urdindo, guarnece o céu de um valor duplamente acrescido:


           Ainda na brochura Zoo, onde, como acabamos de ver, o figurativo adquire uma função surreal que anula a aparente vulgaridade do tema (Safari), dando lugar a uma sátira mordaz do real:

A pele do Leopardo

Veste de graça felina

O manequim da moda.

         Imagina-se a beldade desfilando pelas passerelles da inutilidade. Mas a gravura que ilustra o texto, manipula a imagem do real, pela representação do glosado cliché do homem-vítima:

        A função decorativa e superficial reservada à mulher burguesa que mima uma pretensa solidariedade com a pobreza em chás e soirées dançantes (pobrezinhos, sempre houve e há-de haver!) não escapa ao chiste certeiro do poeta:

As senhoras da sociedade

deram um baile a rigor

para vestir a pobreza

e a pobreza horas a fio

cortou, coseu, enfeitou

os vestidos deslumbrantes

que a caridade exibiu

            ..................................

           
            Parece que ainda sobrou

Algum dinheiro para chita

Para vestir a pobreza

....................................
                                               (Caridade, in Viagem ao País dos Nefelibatas)

          Finalmente, uma outra vertente trabalhada pelo poeta é a que retrata o quotidiano cinzento e amargo do desamor, da ausência do amor e do amor-mercadoria que estiolam e secam e seiva da vida e desvirtuam o sentido profundo do Amor.

Em Poesia Necessária, registam-se dois poemas, Auspicioso Enlace e As Solteironas paradigmáticos de não-amor e, por isso, de anti-mulher: a que é transacionada, porventura paradigma da menina prendada, que toca piano para distrair as visitas e para iludir o imenso tédio da vida e a que envelhece só.

Um amor de amar


(Ou a quimera da mulher amada)


Sob uma Bandeira, que não chegou a ver a luz do dia, tem como únicas referências cronológicas de criação os anos de 1976/77. Trata-se seguramente do esboço organizativo de um livro de poemas de recorte estético multifacetado, onde a emoção adquire tonalidades multidimensionais e, como o próprio autor afirma no poema de abertura, a palavra: 

a nós chega
                    liberta
de tudo que na dura lei do tempo morre


Na primeira parte do livro, intitulada Memória Lusíada ou o Transitório Eterno Ainda, surge o poema Incendiado Amor, que, com mestria, dialoga com o poema de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver”, pelas contradições do amor, pela sua variabilidade, pela imagem do poeta sempre a ele preso, sofrido e deleitado. As antíteses, a adjetivação e as hipérboles aproximam os dois poetas, perspetivando o mesmo amor eterno e a mesma imagem de mulher, objeto de amor, também ela vária, mas sempre soberana:

            Incendiado amor

                sob as cinzas do dia fogo aceso

                tão vário e tão igual

                sempre o mesmo

                de tão diferentes amadas sempre preso.

E tão sincero amor


                a elas dado

                sofrido e contente, deslumbrado,

                a todas fiel

                leal e dedicado.

           
            Neste poema, o poeta esboça o cânone estético e conceptual que irá configurar o universo criador em torno do amor e, por contiguidade, da mulher, a quem, aparentemente, confessa fidelidade e lealdade indiscutíveis. Ou, pelo contrário, apenas é fiel e dedicado ao Amor, a um amor vivido como mito, que banha as suas raízes na realidade profunda e faz parte integrante do nosso ser corporal, mas, por isso mesmo, amor vivido, em cada momento, com autenticidade no seu caminho errante e incerto? A ironia latente nos dois últimos versos, relativamente à verdade do amor confessado, pela profusão de adjetivos bem ao gosto dos estafados clichés do discurso amoroso, não introduz uma real distanciação em face do valor de verdade desse mesmo amor? Ou o poeta ironiza tão só a sua própria ironia, num jogo subtil de interditos, convencido que está de que a fidelidade e a lealdade são condições essenciais para a existência deste sentimento maior?

            A forma escorreita e nítida como o poeta desvenda a sua intenção, numa primeira leitura,  optando pela frase curta, contida, semeada de pausas, tece uma linguagem segunda que projeta a busca incessante da verdade de um amor que dê seiva ao lado prosaico da vida, um amor que se renova e cresce, em cada corpo de mulher.

Aliás, o título do corpus em causa, O AMOR DE AMAR-TE (que será publicado em anexo), marca a necessidade premente em materializar a presença feminina, consubstanciada na forma verbal, pela partícula -te e no valor significante das aliterações. Estes efeitos estilísticos potenciam-se, conferindo autenticidade, espessura e valor de verdade ao carácter confessional da mensagem.

A força poética de que a palavra é investida consegue rasgar a casca delida do discurso amoroso convencional, e irrompe nova, fresca, num jogo de sedução que une, a um tempo, o emissor, a mensagem e o leitor.

            Não se trata da imagem da mulher, companheira para toda a vida, antes de um sentimento total e leal, uma entrega que, sendo avessa à constância, se bebe puro, como se fosse o último e o único. O deslumbramento experimentado perante «elas» subentende uma busca incessante e inigualável, tratando-se, em cada nova experiência amorosa, de um rito iniciático. Por isso, o deslumbramento sentido, em face da revelação de uma nova imagem de mulher de que o poeta se apropria, enquanto criação poética de um tempo primordial em que mergulha e se revigora a cada novo encontro.

            E o poema que encerra o corpus, e que partilha com este o título, O Amor de Amar-te, vem reforçar a visão acima expressa:

O amor de amar-te

foi a minha vida


No cabo da vida

amor primeiro.


                Por um lado, a iteração da palavra «vida», no primeiro dístico, significando o ser em devir, em construção, e no segundo, conotando de algum modo a morte que espreita, dimensionam o papel central do amor, que sem cessar renasce, como as células do corpo; por outro lado, o jogo se sentidos entre «cabo» e «primeiro» dialoga com a recorrência do advérbio «sempre» da segunda estrofe do poema Incendiado Amor, sublinhando com veemência a fidelidade ao amor e, simultaneamente, a inevitabilidade da sua inconstância.
            Nesta ordem de ideias, nos versos que constituem o incipit da parte em análise:

Se a maré nos colhe na sua onda louca

E o raio rasga o céu da nossa calma

Não tenhas medo, amiga, escuta

...............................................................

O poeta invoca os elementos – a água e o fogo – na sua relação dinâmica e aparentemente oposta, mas ambos dotados de uma enorme força simbólica: um, a água, fonte de vida, de purificação, de regeneração, e o raio, língua furiosa de fogo que imola mas também purifica, para lhes opor a força maior da palavra que o poeta sussurra ao ouvido da amiga-amada. Intui-se uma imagem de mulher («amiga»), companheira frágil, a quem o sujeito poético promete proteção e conselho através da palavra que «sendo de cada um se faz eterna».

 Mas ao mesmo tempo, não deixa de se poder subentender, a exemplo do papel da mulher na poesia trovadoresca, outro referente: a amiga-amante, simultaneamente, voz e suserana. Nesta aparente contradição, se dirime a conflitualidade entre a imagem da mulher objeto de veneração, de desejo e de proteção (Não tenhas medo, amiga) e uma outra que a envolve numa aura de inacessibilidade, de ausência e de memória, como se, porventura, o amor não fosse mais do que uma saudade: 

Te recorda assim

meu pensamento

nos longos dias de ausência

onde moras.

                               (Voo)

Ou ainda nos poemas:

Guardo

                no mais fundo de mim

do tempo e da distância

            a tua imagem.
                                   (Espelho)

Como a rosa

     No escuro da noite
é só perfume

És

nos longos dias de ausência
só lembrança.

                                   (Saudade)


Note-se a estrutura estrófica dos poemas, a disposição dos versos deste último, onde a métrica se retrai e os espaços se dilatam, sugerindo a emoção a custo contida e a inutilidade do verbo, em face da expressividade dos espaços, onde o silêncio, fugaz como o perfume,  se ergue, numa tentativa de superar o vazio da distância e do tempo e agarrar a rosa, símbolo do amor puro e de regeneração.

Aliás, a mulher, perfume e evanescência, simultaneamente presença e ausência, encontra-se em outros poemas, como se, para ser inteiro, o amor necessitasse da tensão entre o agora-sentido e o antes-vivido, a miragem e o oásis, para poder sorver-se em toda a sua pujança. 

Esta perspetiva de fugacidade do amor surge claramente no poema O Pássaro Azul, metáfora da mitológica fénix.  É curioso notar que o azul conota simultaneamente imaterialidade e inatingibilidade e, conjugada com a palavra pássaro, simboliza felicidade, ao mesmo tempo inacessível e próxima, mas, em todo o caso inatingível, não passando de um mito:

......................................

bordado a matiz

num pano antigo [?]

Entre flores que não murcham

.......................................

Este sentimento de perda e de ilusão, que, de todo o modo, procura confirmar a fidelidade ao amor, é reforçado pela segunda estrofe:
.....................................

O que passou foi a vida

fio de água correndo

no chão dos dias

com um pássaro azul dentro.

No poema Presença, o poeta sublinha de forma iniludível esse universo fugidio, esse horizonte que se dilui na espuma do imaginário. A presença da mulher, tão detalhadamente burilada, tão real, impressiva e incisiva naquele instante, acaba por ser denegada, pela força do deslumbramento causado:

Lembro agora o teu perfil

Tão vário e tão igual em cada hora

Que já nem sei

Se realmente foste tu ou foi miragem

O minuto a cidade e vida o mundo

Em que sempre e nunca te encontrei.

A proximidade do objeto do amor não rima com reciprocidade, nem partilha. Nem mesmo o contacto físico consegue encontrar o norte que haveria de vencer a cortina de indiferença (ou impossibilidade de amar) por parte da mulher.  
            No entanto, à imagem da mulher que escuta, a mulher aparentemente passiva, contrapõe-se
uma outra que, numa alquimia de sensações, se metamorfoseia, metáfora da natureza e dos seus elementos. E o amor adquire plasticidade, o ser perde a sua rigidez, e molda-se ao sabor dos sentidos e do devaneio, numa viagem cósmica, como se pode observar nestes versos do poema Metamorfoses do Amor:

Fez-se ave

fui o céu

.................
Fez-se navio

fiz-me onda

....................

Foi como a haste de trigo

fui o vento que a embala.

........................................

           Este poema consegue finalmente exprimir uma comunhão quase perfeita entre amador e coisa amada, não fosse o sentimento de posse, de domínio (prenúncio de fim) do primeiro sobre a segunda, como, sem ambiguidade, se subentende na última estrofe:

Fez-se flor,

colhi-a.

            O sentimento imanente de busca incessante, de luta pela inevitabilidade do carácter fluido e fugaz do amor, como se, paradoxalmente, apenas fosse totalmente vivido na ausência ou na memória, emerge dos três primeiros poemas que abrem a parte O AMOR DE AMAR-TE.

            Se na maioria da poesia sobre a mulher-amor, o tempo predominante é o pretérito perfeito, simbolizando um passado que reinventa o presente pela memória e pelo imaginário do signo, já em Arabesco, Constelação e As Quimeras, poemas que abrem a parte O AMOR DE AMAR-TE, o lirismo emerge de um desejo, ou de uma quimera, e, por isso, não pode ser satisfeito, porque localizado num não-tempo que, por sua vez, gera um não-espaço. O valor modal do Conjuntivo – e o seu correlato, o Condicional (expresso ou oculto) – deslocam a ação da linearidade temporal, remetendo-a para o paradoxo de um futuro do pretérito, para uma «rêverie»; mas nem por isso a mensagem é menos autêntica.

            É como se o poeta sonhador mistificasse o próprio ato de sonhar e o que nele existe de potencialmente criador. E, pelo ato criador, o eu projeta com autenticidade um mundo de palavras e de imagens onde momentaneamente se refugia. O amor e a sua concretização são uma aporia, de que o poeta tenta desresponsabilizar-se: há uma condição que lhe escapa, e nem mesmo o seu poder demiúrgico é suficiente para dirimir a oposição entre desejo e fruição:

            Fosse  minha alma o arabesco

do tapete

que pisasse

                o teu pé descalço...

                .................................................

                                                               (Arabesco)
                Que a minha mão poisasse

                no joelho macio de Andrómeda

                ...................................................

                                                               (Constelação)
            Fosse o teu império

o meu desejo

e a tua glória

fosse que eu te amasse.

....................................

(As Quimeras)



Esta impossibilidade de concretização do amor é, ao longo dos poemas, caldeada pela assunção de um erotismo e de uma sensualidade que não se encontram facilmente na poética de Joaquim Namorado. É como se o desejo puro e sensual se inflamasse e derrotasse a sua imaterialidade, através da mancha tipográfica em fundo branco. É que estes poemas, são fundamentalmente visuais. A luta entre a miragem e o oásis trava-se perante os olhos do leitor.

 E o olhar do leitor cúmplice vê, de facto, em contraluz, a explosão de um quadro bem real: o Futuro do Pretérito transmudado em Presente Contínuo. E a mão do poeta sobe:
            ..........................

lenta (...)

até lá onde

o puro amor

se enovela e acende.

                                             ( Constelação)
 

             A duplicidade do amor e da mulher, simultaneamente tão longe e tão perto, tão perene e tão fugaz, tão comum e tão inacessível, semeia todos os poemas coligidos em Sob Uma Bandeira. E esta dualidade induz uma dor intrínseca que se desnuda, no poema  A Praia:

Vestida da indiferença

vestida do esquecimento

que finges

..........................................

Ouves distraída as palavras

que te digo

.........................................

As imagens de descrição da mulher, na sua aparente (ou real?) indiferença, a linguagem disfórica, conotando os desencontros e os desenganos do amor,  não são, porém, suficientemente fortes para calar a voz da memória, da vida e do imaginário:

Recordo

ou invento

meu amor o mundo

de sermos um do outro

sem remorso
                                        (O tempo do Amor Feliz)


O rosto da mulher na obra de Joaquim Namorado entretece-se no não-dito, raramente se manifestando em superfície, ao nível da expressão. É a atualização do conteúdo que o enforma e lhe aviva os contornos.

Não será em grande medida a presença da mulher uma ausência ficcionada?



                                                                       Maria Fernanda Campos


(Este texto foi publicado na revista NOVA SÍNTESE)















                                                          



           



           









           









* Constituem o corpus desta análise os poemas que, relacionados com o tema, estão inseridos em Incomodidade, Poesia Necessária, Zoo e no projecto de livro Sob uma Bandeira que não chegou a ver a luz do dia e onde se encontra uma parte totalmente constituída por poemas de amor inéditos.

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