PRESENÇA DA MULHER NA POESIA DE JOAQUIM NAMORADO
A voz que me
dita os versos
..............................................
é tua, meu
amor, de quanto é nosso,
só porque
sentindo-o o partilhamos
destas horas
que s e alongam tristes
e doutras
que foram e hão ser
da luta, do
tormento, da alegria
e da glória
de vivê-las plenamente.
(Poesia
Necessária)
No
entanto, são as raízes de uma estética comprometida com um ato criador
verdadeiramente contaminado pelas circunstâncias históricas - que o poeta
abraçou e em que militantemente se envolveu - que projetam a mulher,
verdadeiramente assumida como parte inteira da humanidade, recusando-lhe, por
isso, qualquer tratamento especial que, parecendo exaltá-la, não passasse,
afinal, de uma hipócrita exaltação, como veremos nalguns poemas. Aliás, quer no
contexto do poema-arma, quer nos que celebram o Amor em toda a sua grandeza, o
amor-memória e o amor-futuro do pretérito, é a mulher-humanidade, a amiga, a
amante, o recanto acolhedor, a companheira de luta em devir, que avultam de
forma indelével na criação poética de Joaquim Namorado.
A metodologia que
tentaremos seguir concentrar-se-á no enquadramento poético das obras em análise*, partindo das recorrências e redes de
significações que configuram o tema do imaginário feminino do poeta, bem como
das metáforas matriciais que transbordem os limites materiais de um livro,
contaminando o universo dos outros. Buscam-se as sonoridades, os sentidos
expressos e ocultos, o dito, o não-dito e o interdito que constroem o universo
polifónico e polis semântico, e configuram o universo feminino do poeta. A
perspetiva temática, no caso vertente, realçará os enfoques intratextual e
intertextual – pela valorização das repetições dos conteúdos semânticos e dos
recursos estilísticos que aí operam e pelo diálogo que o tema estabelece com as
outras obras – , e a perspetiva extratextual, no que ela permite detetar a
importância, quer do “real”, quer da vivência do autor.
A Mulher-Bálsamo e a Mulher-Humanidade
Iniciamos esta incursão
orientada pela obra do poeta, analisando os sinais que configuram a imagem da
mulher que acolhe e conforta e da mulher cidadã do mundo.
Em Invenção do Poeta
(primeira parte de Incomodidade), na dolorosa e contraditória
metamorfose por que há de passar, o poeta busca forças na memória longínqua da
infância, no ninho protetor do colo materno:
Mãe!...
acaricia, assim, os meus
cabelos,
leve, carinhosamente:
deixa que eu sonhe
ser o outro
que nunca mais voltou...
A invocação da imagem da
mãe (acaricia, assim), desse espaço primordial revela, não fundamentalmente
a nostalgia de um tempo-espaço de felicidade e de segurança, perdido algures
num recanto da memória, mas antes um devir de expressão e um devir do próprio
ser íntimo e autêntico. O sujeito poético, dilacerado entre o que ser que foi e
o ser em construção, bebe com sofreguidão a seiva retemperadora e inspiradora.
Ou distancia-se do sonho
materno, do projeto de futuro alicerçado numa visão paradisíaca do mundo. Em Transmutação
(in Invenção do Poeta), o sujeito poético,
outro que não o idealizado, porque falso, confessa:
Minha mãe me talhara outro
destino
-para os filhos, as mães
sonham vidas
só de sonhos (...)
Também no incipit de
Poesia Necessária, (Quis escrever neste livro um nome do amor),
bem como no poema de abertura (a voz que me dita os versos (...) /
é tua, meu amor) a invocação do amor e do seu correlato – a mulher –
desempenham para o criador o papel simultâneo de âncora e matéria libertadoras,
nos plano estético e óntico.
A mulher-humanidade, parte
igual e integrante de todos os povos e de todos os homens, está presente por
ausência. Quando o poeta, animado de uma força transformadora e confiante no
coração e na generosidade combativa do homem seu irmão, esgrime a palavra num
registo épico, futurante e libertador, ou quando desce aos infernos de vidas
amputadas e prisioneiras, ou ainda às torres em que se refugiam diletantes e
retóricas, a matriz masculina do signo linguístico não exclui o lado feminino,
nem o subalterniza. Bem pelo contrário: em Poesia Necessária ,
as metáforas do sofrimento, da dor e da esperança têm apenas um
género, o género humano:
Um menino chora,
sem razão?!...
A mãe limpa com um lenço
branco
as lágrimas e chora,
chora porque chora
o seu menino,
sem razão?!...
(Decalque de sete desenhos de
Manuel Ribeiro de Pavia)
ou
Canto os homens e as armas
E o sangue derramado e o
sangue vivo
Que nas veias corre como um
sol cativo
Pronto a dar-se às
madrugadas de amanhã.
Também em Incomodidade
abundam as marcas deste género humano:
Ó, mocidade, vai para os
estádios,
Vai para as oficinas
cantando!
Faz da tua vida luta, amor e
alegria
(Exortação)
O poeta, aliás, procura,
noutros poemas, afirmar a sua total rejeição por qualquer estética piegas e
delirante, que não passa, em seu entender, de um conjunto de exercícios estéreis
e de um lirismo bacoco tecido de lugares-comuns, em torno de um amor seco e de
uma mulher de papel. Disso são exemplo alguns dos poemas publicados em Incomodidade,
com o título Temas Obrigatórios. Para o poeta, trata-se de uma
metafísica estafada, divorciada do pulsar da vida, a cheirar a rosas murchas e
alimentada por poetas estúpidos, presos a musas rabugentas
Oh, a minha musa queixa-se,
Não amor em delíquios,
Não tremor de mãos,
Não camélias desbotadas,
..............................................
(Não)
ou
Se me pedisses a lua,
a lua te daria,
encastoada num milhão de
estrelas...
(O delírio é fácil...)
Todavia, o poeta não
restringe a sua veia satírica aos estereótipos desta retórica, tão ao gosto
ultrarromântico; desconstrói a aparente seriedade do próprio poema, pela
introdução de elementos bizarros e imprevisíveis, com o intuito de sublinhar a
sua distanciação relativamente àquela estética e à mulher-objeto. O poema Não
termina deste modo:
Oh, a minha musa está
impossível,
Só molhos franceses,
Vou a um restaurante barato
Comer arroz e grão
-chiça.
A vulgaridade e a brejeirice
que caracterizam o fiel do poema, mais não pretendem do que ridicularizar o
lugar-comum da mulher-musa-inspiradora.
Talvez o exemplo mais feliz
de recusa do drama romântico, do drama amoroso, seja o final do poema Paixão
e Fim Dum Tema Romântico, integrado também em Incomodidade, e
que glosa o drama shakespeariano de Romeu e Julieta:
Caia o pano de boca
sobre o falso drama,
num ai.
[Sol, electricista]
[Música, maestro]
A Anti-Mulher
A imagem simbólica que domina o
paradigma tradicional da mulher-esposa, da mulher-adorno, submissa, subalterna,
superficial e doméstica, o lado mais frágil do ser humano, mas também tocada
pela veia satânica e pecaminosa, tem lugar de relevo na criação poética de
Joaquim Namorado.
Numa linguagem primeira, é alvo de
sarcasmo e de paródia, linguagem essa que, por seu lado é significante de uma
outra que, em profundidade, visa denunciar o ranço e a hipocrisia da moral
beata de uma sociedade mal sã, sem ética.
O paralelismo entre a educação
tradicional a que a mulher era submetida e o pendor malévolo para o pecado e a
tentação conjugam-se, de modo notável no poema Ultraje ao Pudor,
inserido em Incomodidade, na parte intitulada Viagem ao País dos
Nefelibatas:
As mãos dos escultores te modelaram
nua
os pintores
te pintaram
nua
os poetas
te cantaram
nua
e os homens
te amaram simplesmente
nua...
Mas Satanás
vestiu-te
e lá tinha
as suas razões...
Note-se a configuração
estrutural do poema, oscilando entre versos mais longos, cortados pela
anaforização do vocábulo nua, que marca uma cadência incisiva,
assertiva, eivada de uma denúncia contida, mas nem por isso menos presente. Mas,
no remate do poema, o verso final, introduz uma paradoxal conivência com a
intromissão satânica, a que não é alheio um certo efeito de distanciação, de
intenção claramente «paródica», mais do que irónica ou satírica.
No pequeno poema O Diabo
( in Zoo), há um notável diálogo entre o texto e gravura que o ilustra:
Satan era um anjo...
Não foi por isso que deixei
de
acreditar no céu...
A associação dos
substantivos Satan, anjo e céu promove uma interpretação concordante com a
doxa: o anjo Satã renegou a sua origem benigna, mas, nem por isso, o céu deixou
de existir para os corações piedosos e bons. Porém, a gravura reenvia o leitor para
uma realidade outra, transgressora, mas não menos possível: o efeito especular
das imagens da mulher e de Satã, indelevelmente associados pela tessitura que
vão urdindo, guarnece o céu de um valor duplamente acrescido:
Ainda na brochura Zoo,
onde, como acabamos de ver, o figurativo adquire uma função surreal que anula a
aparente vulgaridade do tema (Safari), dando lugar a uma sátira mordaz
do real:
A pele do Leopardo
Veste de graça felina
O manequim da moda.
Imagina-se a beldade
desfilando pelas passerelles da inutilidade. Mas a gravura que ilustra o texto,
manipula a imagem do real, pela representação do glosado cliché do
homem-vítima:
A função decorativa e
superficial reservada à mulher burguesa que mima uma pretensa solidariedade com
a pobreza em chás e soirées dançantes (pobrezinhos, sempre houve e há-de
haver!) não escapa ao chiste certeiro do poeta:
As senhoras da sociedade
deram um baile a rigor
para vestir a pobreza
e a pobreza horas a fio
cortou, coseu, enfeitou
os vestidos deslumbrantes
que a caridade exibiu
..................................
Parece que ainda sobrou
Algum dinheiro para chita
Para vestir a pobreza
....................................
(Caridade, in Viagem
ao País dos Nefelibatas)
Finalmente, uma outra
vertente trabalhada pelo poeta é a que retrata o quotidiano cinzento e amargo
do desamor, da ausência do amor e do amor-mercadoria que estiolam e secam e
seiva da vida e desvirtuam o sentido profundo do Amor.
Um amor de amar
(Ou a quimera da mulher amada)
Sob uma Bandeira, que não chegou a ver a luz do dia, tem como
únicas referências cronológicas de criação os anos de 1976/77. Trata-se
seguramente do esboço organizativo de um livro de poemas de recorte estético
multifacetado, onde a emoção adquire tonalidades multidimensionais e, como o
próprio autor afirma no poema de abertura, a palavra:
a
nós chega
libertade tudo que na dura lei do tempo morre
Na primeira parte do livro, intitulada Memória Lusíada ou o Transitório
Eterno Ainda, surge o poema Incendiado Amor, que, com mestria,
dialoga com o poema de Camões “Amor é fogo que arde sem se ver”, pelas
contradições do amor, pela sua variabilidade, pela imagem do poeta sempre a ele
preso, sofrido e deleitado. As antíteses, a adjetivação e as hipérboles
aproximam os dois poetas, perspetivando o mesmo amor eterno e a mesma imagem
de mulher, objeto de amor, também ela vária, mas sempre soberana:
Incendiado amor
sob as cinzas do dia fogo aceso
tão vário e tão igual
sempre o mesmo
de tão diferentes amadas sempre
preso.
E tão sincero amor
a elas dado
sofrido e contente, deslumbrado,
a todas fiel
leal e dedicado.
Neste poema, o poeta esboça o cânone
estético e conceptual que irá configurar o universo criador em torno do amor e,
por contiguidade, da mulher, a quem, aparentemente, confessa fidelidade e
lealdade indiscutíveis. Ou, pelo contrário, apenas é fiel e dedicado ao Amor, a
um amor vivido como mito, que banha as suas raízes na realidade profunda e faz
parte integrante do nosso ser corporal, mas, por isso mesmo, amor vivido, em
cada momento, com autenticidade no seu caminho errante e incerto? A ironia
latente nos dois últimos versos, relativamente à verdade do amor confessado,
pela profusão de adjetivos bem ao gosto dos estafados clichés do discurso
amoroso, não introduz uma real distanciação em face do valor de verdade desse
mesmo amor? Ou o poeta ironiza tão só a sua própria ironia, num jogo subtil de
interditos, convencido que está de que a fidelidade e a lealdade são condições
essenciais para a existência deste sentimento maior?
A
forma escorreita e nítida como o poeta desvenda a sua intenção, numa primeira
leitura, optando pela frase curta, contida,
semeada de pausas, tece uma linguagem segunda que projeta a busca incessante
da verdade de um amor que dê seiva ao lado prosaico da vida, um amor que se
renova e cresce, em cada corpo de mulher.
Aliás, o título do corpus em causa, O AMOR DE AMAR-TE (que
será publicado em anexo), marca a necessidade premente em materializar a
presença feminina, consubstanciada na forma verbal, pela partícula -te e
no valor significante das aliterações. Estes efeitos estilísticos potenciam-se,
conferindo autenticidade, espessura e valor de verdade ao carácter confessional
da mensagem.
A força poética de que a palavra é investida consegue rasgar a casca
delida do discurso amoroso convencional, e irrompe nova, fresca, num jogo de
sedução que une, a um tempo, o emissor, a mensagem e o leitor.
Não se trata da imagem da mulher,
companheira para toda a vida, antes de um sentimento total e leal, uma entrega
que, sendo avessa à constância, se bebe puro, como se fosse o último e o único.
O deslumbramento experimentado perante «elas» subentende uma busca incessante e
inigualável, tratando-se, em cada nova experiência amorosa, de um rito
iniciático. Por isso, o deslumbramento sentido, em face da revelação de uma
nova imagem de mulher de que o poeta se apropria, enquanto criação poética de
um tempo primordial em que mergulha e se revigora a cada novo encontro.
E o poema que encerra o corpus,
e que partilha com este o título, O Amor de Amar-te, vem reforçar a
visão acima expressa:
O
amor de amar-te
foi
a minha vida
No
cabo da vida
amor
primeiro.
Por um lado, a iteração
da palavra «vida», no primeiro dístico, significando o ser em devir, em
construção, e no segundo, conotando de algum modo a morte que espreita,
dimensionam o papel central do amor, que sem cessar renasce, como as células do
corpo; por outro lado, o jogo se sentidos entre «cabo» e «primeiro» dialoga com
a recorrência do advérbio «sempre» da segunda estrofe do poema Incendiado
Amor, sublinhando com veemência a fidelidade ao amor e, simultaneamente, a
inevitabilidade da sua inconstância.
Nesta ordem de ideias, nos versos
que constituem o incipit da parte em análise:
Se
a maré nos colhe na sua onda louca
E
o raio rasga o céu da nossa calma
Não
tenhas medo, amiga, escuta
...............................................................
O poeta invoca os elementos – a água e o fogo – na sua relação dinâmica e
aparentemente oposta, mas ambos dotados de uma enorme força simbólica: um, a
água, fonte de vida, de purificação, de regeneração, e o raio, língua furiosa
de fogo que imola mas também purifica, para lhes opor a força maior da palavra
que o poeta sussurra ao ouvido da amiga-amada. Intui-se uma imagem de mulher
(«amiga»), companheira frágil, a quem o sujeito poético promete proteção e
conselho através da palavra que «sendo de cada um se faz eterna».
Mas ao mesmo tempo, não deixa de
se poder subentender, a exemplo do papel da mulher na poesia trovadoresca,
outro referente: a amiga-amante, simultaneamente, voz e suserana. Nesta
aparente contradição, se dirime a conflitualidade entre a imagem da mulher
objeto de veneração, de desejo e de proteção (Não tenhas medo, amiga)
e uma outra que a envolve numa aura de inacessibilidade, de ausência e de
memória, como se, porventura, o amor não fosse mais do que uma saudade:
Te
recorda assim
meu
pensamento
nos
longos dias de ausência
onde
moras.
(Voo)
Ou ainda nos poemas:
Guardo
no mais fundo de mim
do tempo e da distância
a tua imagem.
(Espelho)
Como
a rosa
No escuro da noite
é
só perfume
És
nos longos dias de ausência
só
lembrança.
(Saudade)
Note-se a estrutura estrófica dos poemas, a disposição dos versos deste
último, onde a métrica se retrai e os espaços se dilatam, sugerindo a emoção a
custo contida e a inutilidade do verbo, em face da expressividade dos espaços,
onde o silêncio, fugaz como o perfume,
se ergue, numa tentativa de superar o vazio da distância e do tempo e
agarrar a rosa, símbolo do amor puro e de regeneração.
Aliás, a mulher, perfume e evanescência, simultaneamente presença e ausência,
encontra-se em outros poemas, como se, para ser inteiro, o amor necessitasse da
tensão entre o agora-sentido e o antes-vivido, a miragem e o oásis, para poder
sorver-se em toda a sua pujança.
Esta perspetiva de fugacidade do amor surge claramente no poema O
Pássaro Azul, metáfora da mitológica fénix.
É curioso notar que o azul conota simultaneamente imaterialidade e
inatingibilidade e, conjugada com a palavra pássaro, simboliza felicidade, ao
mesmo tempo inacessível e próxima, mas, em todo o caso inatingível, não
passando de um mito:
......................................
bordado
a matiz
num
pano antigo [?]
Entre
flores que não murcham
.......................................
Este sentimento de perda e de ilusão, que, de todo o modo, procura confirmar
a fidelidade ao amor, é reforçado pela segunda estrofe:
.....................................
O
que passou foi a vida
fio
de água correndo
no
chão dos dias
com
um pássaro azul dentro.
No poema Presença, o poeta sublinha de forma iniludível esse
universo fugidio, esse horizonte que se dilui na espuma do imaginário. A
presença da mulher, tão detalhadamente burilada, tão real, impressiva e
incisiva naquele instante, acaba por ser denegada, pela força do deslumbramento
causado:
Lembro
agora o teu perfil
Tão
vário e tão igual em cada hora
Que
já nem sei
Se
realmente foste tu ou foi miragem
O
minuto a cidade e vida o mundo
Em
que sempre e nunca te encontrei.
A proximidade do objeto do amor não rima com reciprocidade, nem
partilha. Nem mesmo o contacto físico consegue encontrar o norte que haveria de
vencer a cortina de indiferença (ou impossibilidade de amar) por parte da
mulher.
No entanto, à imagem da
mulher que escuta, a mulher aparentemente passiva, contrapõe-se
uma outra que,
numa alquimia de sensações, se metamorfoseia, metáfora da natureza e dos seus
elementos. E o amor adquire plasticidade, o ser perde a sua rigidez, e molda-se
ao sabor dos sentidos e do devaneio, numa viagem cósmica, como se pode observar
nestes versos do poema Metamorfoses do Amor:
Fez-se ave
fui o céu
.................
Fez-se navio
fiz-me onda
....................
Foi como a haste de trigo
fui o vento que a embala.
........................................
Este poema consegue
finalmente exprimir uma comunhão quase perfeita entre amador e coisa amada, não
fosse o sentimento de posse, de domínio (prenúncio de fim) do primeiro sobre a
segunda, como, sem ambiguidade, se subentende na última estrofe:
Fez-se flor,
colhi-a.
O sentimento imanente de busca
incessante, de luta pela inevitabilidade do carácter fluido e fugaz do amor, como
se, paradoxalmente, apenas fosse totalmente vivido na ausência ou na memória,
emerge dos três primeiros poemas que abrem a parte O AMOR DE AMAR-TE.
Se na maioria da poesia sobre a mulher-amor,
o tempo predominante é o pretérito perfeito, simbolizando um passado que
reinventa o presente pela memória e pelo imaginário do signo, já em Arabesco,
Constelação e As Quimeras, poemas que abrem a parte O AMOR DE
AMAR-TE, o lirismo emerge de um desejo, ou de uma quimera, e, por isso, não
pode ser satisfeito, porque localizado num não-tempo que, por sua vez, gera um
não-espaço. O valor modal do Conjuntivo – e o seu correlato, o Condicional
(expresso ou oculto) – deslocam a ação da linearidade temporal, remetendo-a
para o paradoxo de um futuro do pretérito, para uma «rêverie»; mas nem por isso
a mensagem é menos autêntica.
É como se o poeta sonhador
mistificasse o próprio ato de sonhar e o que nele existe de potencialmente
criador. E, pelo ato criador, o eu projeta com autenticidade um mundo de
palavras e de imagens onde momentaneamente se refugia. O amor e a sua
concretização são uma aporia, de que o poeta tenta desresponsabilizar-se: há
uma condição que lhe escapa, e nem mesmo o seu poder demiúrgico é suficiente
para dirimir a oposição entre desejo e fruição:
Fosse minha alma o arabesco
do
tapete
que pisasse
o teu pé descalço...
.................................................
(Arabesco)
Que a minha mão poisasse
no joelho macio de Andrómeda
...................................................
(Constelação)
Fosse o teu império
o
meu desejo
e
a tua glória
fosse
que eu te amasse.
....................................
(As Quimeras)
Esta impossibilidade de concretização do amor é, ao longo dos poemas,
caldeada pela assunção de um erotismo e de uma sensualidade que não se
encontram facilmente na poética de Joaquim Namorado. É como se o desejo puro e
sensual se inflamasse e derrotasse a sua imaterialidade, através da mancha tipográfica
em fundo branco. É que estes poemas, são fundamentalmente visuais. A luta entre
a miragem e o oásis trava-se perante os olhos do leitor.
E o olhar do leitor cúmplice vê,
de facto, em contraluz, a explosão de um quadro bem real: o Futuro do Pretérito
transmudado em
Presente Contínuo. E a mão do poeta sobe:
lenta
(...)
até
lá onde
o
puro amor
se
enovela e acende.
(
Constelação)
A duplicidade do amor e da mulher,
simultaneamente tão longe e tão perto, tão perene e tão fugaz, tão comum e tão
inacessível, semeia todos os poemas coligidos em Sob Uma Bandeira.
E esta dualidade induz uma dor intrínseca que se desnuda, no poema A Praia:
Vestida
da indiferença
vestida
do esquecimento
que
finges
..........................................
Ouves
distraída as palavras
que te digo
.........................................
As imagens de descrição da mulher, na sua aparente (ou real?)
indiferença, a linguagem disfórica, conotando os desencontros e os desenganos
do amor, não são, porém, suficientemente
fortes para calar a voz da memória, da vida e do imaginário:
Recordo
ou
invento
meu
amor o mundo
de
sermos um do outro
sem
remorso
(O tempo do
Amor Feliz)
O rosto da mulher na obra de Joaquim Namorado entretece-se no não-dito,
raramente se manifestando em superfície, ao nível da expressão. É a
atualização do conteúdo que o enforma e lhe aviva os contornos.
Não será em grande medida a presença da mulher uma ausência ficcionada?
Maria
Fernanda Campos
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