A
ESCOLA ENTRE O LADINO E O POKÉMON
ou a
difícil tarefa de ensinar a viver
A
escola vive tempos de incerteza, comprometida com a salvaguarda do nosso património comum, histórico e cultural, que
nos caracteriza enquanto humanidade, e com a necessidade de abrir vias positivas de progresso pessoal e social para as crianças
e os jovens que a frequentam. O
esbatimento progressivo das funções do Estado, nas últimas décadas, por pressão
do mercantilismo e do capital financeiro, sentiu-se, com especial acuidade, na
educação e nas suas instituições educativas, particularmente nas públicas.
A
desqualificação da profissão docente e da sua representação simbólica, o
desinvestimento na formação de professores como um imperativo estratégico e a
limitação dos recursos materiais, só não resultaram num prejuízo esmagador para
o futuro de gerações de estudantes, graças
ao espírito de missão dos seus melhores profissionais. Quase náufragos
em mares de burocracia, continuam a “levar a carta a Garcia”, com denodada,
feliz e futurante teimosia.
A
escola continua atenta à mensagem simbólica do «Ladino», o pequeno pardal de um
conto homónimo de Miguel Torga, paradigma de uma pedagogia de vida pautada
pelos mecanismos reguladores de saberes e de aprendizagens, porventura encarados por
muitos como obsoletos; é pressionada, por outro lado, pela vertigem de um novo
modelo de comportamento balizado pelo imediatismo, pela velocidade; procura
permanecer viva num tempo que se anula a cada instante e num presentismo que se esgota mal emerge, na
busca labiríntica de um superreal que se vai desconstruindo ao sabor de
mecanismos e de regras que nos escapam, protagonizado pela mais recente
descoberta das novas tecnologias: o Pokémon.
Procura
vias de sobrevivência intelectual para os jovens, em geral, mas
particularmente, para os que ainda vêem na escola e no ensino formal uma porta
de acesso a condições de vida mais dignas e a patamares de êxito pessoal e
profissional. Preserva a memória viva do pequeno Ladino, dividido entre a
segurança do adquirido e a ousadia de abrir as asas, rumo à conquista da
emancipação.
Mas,
os fantasmas que procuram cercear e acomodar aos interesses do mercado a função
da escola e da edução pesam sobre elas de forma preocupante.
1.
Debate-se com o fantasma de um pensamento dominantemente virado para o
individualismo exacerbado, em prejuízo da prática de uma pedagogia coerente,
dialógica e cooperativa. A condição basilar de desenvolvimento de um ato
pedagógico reside no facto de haver condições, em contexto de espaço escolar, de
exposição, de questionamento, de reflexão e de experimentação.
O
acesso ao conhecimento é superficial, momentâneo e desconexo, de consulta a
informações, quantas vezes incorretas e descontextualizadas, cujo resultado
rondará no mimetismo, ou no plágio. O estudante tem quase sempre um papel de
mero recetáculo, tipo consumidor; e, neste caso, a função mediadora e orientadora
do professor é residual, ou mesmo descartável, e a ausência do grupo-turma não
causa, aparentemente, o menor dano.
Visa-se o êxito estreito, pela absorção de um
conjunto de matérias, cuja eficácia em termos de aquisição de competências, é
tão exígua, que dificilmente pode promover a necessária reorientação, no
domínio profissional. Raramente fornece elementos essenciais propiciadores da
autoaprendizagem e do sentido crítico, o pensamento problematizante não
é treinado, o necessário lastro cultural é inexistente.
O
sentimento de pertença a uma comunidade de iguais perde qualquer significado,
os laços afetivos são efémeros, egoístas, descartáveis, como se se visasse uma
sociedade reduzida à soma dos individualismos, onde o sentido identitário e
coletivo se esboroassem por entre as malhas de uma rede de estímulos predadores
do «bem comum», cujo sentido oscila segundo as circunstâncias e as motivações.
No
fundo, o que está verdadeiramente em questão é a conceção neo- liberal do
mundo, no seu mais desgarrado intuito de manipular o sujeito, de forma a poder
mais facilmente ser controlado, muito embora, na aparente superficialidade do
quotidiano, ninguém seja impedido de preferir o supermercado A ao supermercado
B, a marca de roupa Y, ou os ténis X. O
que verdadeiramente importa é iludir o vazio da “realidade
consumidor” , seja ele da gama denominada produtos educativos,
formativos ou culturais. O que verdadeiramente importa é não pensar.
Os
projetos escolares de natureza globalizante e performativa, propulsores da
aquisição interdisciplinar dos saberes e de percursos escolares eficientes e
substantivos, caldeados por vivências sociais e culturais multifacetadas,
chocam, amiúde, com um real impositivo, redutor e unívoco que exalta os
mimetismos acríticos.
2.
O poder avassalador e totalitário dos meios informáticos e da cultura do
numérico parece coartar todas as práticas pedagógicas mediatizadas pela função
do professor, a que vem juntar-se, com caráter de inelutabilidade, a desinstitucionalização
da escola, substituindo a sua raiz democratizante e participada, por um conjunto de preceitos de índole tecnocrático-empresarial que
desemboca em rankings destituídos de qualquer sentido de singularidade
contextual. Os mega agrupamentos de escolas constituem um dos exemplos mais
gritantes de descaracterização da escola, enquanto território educativo,
sujeito a um conjunto de regras conflitualmente aceites pelos vários setores
que o constituem, com os seus direitos e deveres, mas constituindo uma
comunidade de sentido institucional e socialmente reconhecido
Alardeiam-se
aos quatro ventos valores universalistas e genéricos fundadores da condição humana, no entanto,
fornece-se um conjunto de saberes oferecido pelo empresariado da formação, em
nome da empregabilidade que se ergue
como um totem do sucesso, dilacerando, pouco a
pouco, o tecido social urdido em práticas de convivialidade, de partilha e de
contraditório.
Acena-se
com a municipalização da educação, em nome da ineficácia e do caráter
centralizador e pesado do Estado, desresponsabilizando-o de uma das suas
funções constitucionalmente reconhecidas; para iludir os incautos, pinta-se um
cenário paradisíaco recheado de conceitos, tão ocos quanto prenunciadores de
discutíveis efeitos benéficos, mas gerador,
seguramente, de desigualdades e de retrocessos nas condições materiais e
simbólicas oferecidas aos alunos. Não vivemos num país harmoniosamente
equilibrado, do ponto de vista dos recursos e das condições de vida das
populações; é impensável que dois jovens, um vivendo numa pequena vila de
Trás-os- Montes e outro em Lisboa ou em Aveiro, vão poder dispor das mesmas
oportunidades educativas e culturais, pese embora o esforço de autarquias e
associações de natureza pública.
3.
O último fantasma que assombra a escola e a educação, e que está intimamente
conectado com o modelo neoliberal, é o «empreendedorismo». No virar do século,
o ícone do “micro-pequeno empresário” invadiu todo o discurso
mediático-institucional. Não há escola, instituição, empresa, congresso, curso
de formação que não apresente o empreendedorismo como o redentor do desemprego,
do emprego mal remunerado, do desenvolvimento do país e da independência
relativamente ao patronato. Defende-se que as escolas se apliquem para
transformar cada aluno num empreendedor, de sucesso, de preferência.
As
atividades desenvolvidas em muitas escolas, há dezenas de anos, visavam, e
visam, a promoção da criatividade, da
iniciativa, mas também da cooperação e da corresponsabilização, indispensáveis
à integração da pessoa humana na sociedade e no exercício da cidadania, cientes
de que ela pertence a uma comunidade de outros seres humanos, face aos quais
tem direitos e deveres. O empreendedorismo esconde, na realidade, a razão de
ser de um modelo de desenvolvimento gerador das anomalias – o desemprego, a
precariedade laboral, as políticas austeritárias – de que é o verdadeiro autor,
imputando ao desempregado a responsabilidade pela situação em que se encontra.
Deste modo, os poderes fácticos, de forma subliminar, dissimulam a
voragem com que se apropriam do
«bem comum».
A
aceitação acrítica desta ideologia, pelos poderes públicos, nomeadamente pelos
responsáveis pelos programas escolares e pelos projetos de escola poderão, inadvertidamente,
contribuir para a criação de gerações de frustrados profissionais, de seres
humanos culpabilizados por eventuais fracassos e desprotegidos percursos de
vida.
É
notório o grau de desconforto e de resistência de muitos atores envolvidos no
processo educativo, perante a ameaça de uma realidade em que a escola pode perder o pé, dilacerada por
interesses conjunturais, alheios à exigência
de ensinar a pensar. Como se o terreno escolar pudesse tornar-se movediço e
poroso, sem âncoras à vista, sem estratégias de sobrevivência, nem finalidades
coerentes com os propósitos que pragmaticamente lhe incumbem. A exemplo, aliás,
do manto das incertezas, quanto ao futuro de um mundo em convulsão permanente,
em que as fraturas sociais e civilizacionais se aprofundam, não obstante os
avanços científicos e tecnológicos alcançados.
4.
Não é certo, nem seguro, que a escola possa liderar uma rutura nas forças
hegemonizadas pelo capitalismo, gerador de desigualdades e de condições de vida
desumanas e desumanizantes. Seria estulto ignorar o poder dos interesses que
insidiosamente procuram controlar a escola, reduzindo-a a um sucedâneo
reprodutor de injustiças sociais. A tão
propalada «igualdade de
oportunidades» não é mais do que uma
frase sem substância, utilizada para apaziguar as más consciências; apenas
esconde, ou a ausência de vontade, ou a incapacidade de promover realmente a
igualdade. Mas, sem dúvida que a escola é um aliado indispensável na construção
do pensamento crítico, de vias de acesso ao conhecimento problematizador e
fecundo.
Constituirá um ato de resistência, se a
prática pedagógica privilegiar o combate sistemático pelo direito de pensar, e desenvolver o espírito crítico, contornando o
consumismo acéfalo de resmas de informação e de conhecimentos desconexos e
desestruturados, permanentemente despejados pelos meios de comunicação. A
consulta seletiva, a mediação reflexiva suscitada pela reabilitação urgente,
não só do tempo necessário ao ato de aprender, como do silêncio criador de
imaginário, constituem, seguramente, competências maiores indispensáveis à difícil
tarefa de aprender a viver.
«Ladino» e Pokémon podem e devem coexistir em
contexto escolar. Os meios informáticos, os instrumentos tecnológicos, as
pedagogias promotoras de autonomia e de criatividade, as operações de
desenvolvimento cognitivo, os livros, o discurso regulador e as plataformas
digitais são úteis e emancipatórios, quando encarados como meios e não como
fins em si. Em cada momento, a função arbitral do professor agilizará os
procedimentos mais apropriados a cada tarefa. A resistência ponderada ao uso
avulso e inconsequente de cada um dos instrumentos e ferramentas de que dispõe
exige dele uma grande capacidade de liderança e de persuasão.
M.
Fernanda Campos
Setembro,
2016
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