segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A ESCOLA ENTRE O LADINO E O POKÉMON



A ESCOLA ENTRE O LADINO E O POKÉMON  
ou a difícil tarefa de ensinar a viver

A escola vive tempos de incerteza, comprometida com a salvaguarda do nosso  património comum, histórico e cultural, que nos caracteriza enquanto humanidade, e com a necessidade de abrir vias  positivas  de progresso pessoal e social para as crianças e os jovens  que a frequentam. O esbatimento progressivo das funções do Estado, nas últimas décadas, por pressão do mercantilismo e do capital financeiro, sentiu-se, com especial acuidade, na educação e nas suas instituições educativas, particularmente nas públicas.
A desqualificação da profissão docente e da sua representação simbólica, o desinvestimento na formação de professores como um imperativo estratégico e a limitação dos recursos materiais, só não resultaram num prejuízo esmagador para o futuro de gerações de estudantes, graças  ao espírito de missão dos seus melhores profissionais. Quase náufragos em mares de burocracia, continuam a “levar a carta a Garcia”, com denodada, feliz  e futurante teimosia.
  A escola continua atenta à mensagem simbólica do «Ladino», o pequeno pardal de um conto homónimo de Miguel Torga, paradigma de uma pedagogia de vida pautada pelos mecanismos reguladores de  saberes  e de aprendizagens, porventura encarados por muitos como obsoletos; é pressionada, por outro lado, pela vertigem de um novo modelo de comportamento balizado pelo imediatismo, pela velocidade; procura permanecer viva num tempo que se anula a cada instante e  num presentismo que se esgota mal emerge, na busca labiríntica de um superreal que se vai desconstruindo ao sabor de mecanismos e de regras que nos escapam, protagonizado pela mais recente descoberta das novas tecnologias: o Pokémon.

Procura vias de sobrevivência intelectual para os jovens, em geral, mas particularmente, para os que ainda vêem na escola e no ensino formal uma porta de acesso a condições de vida mais dignas e a patamares de êxito pessoal e profissional. Preserva a memória viva do pequeno Ladino, dividido entre a segurança do adquirido e a ousadia de abrir as asas, rumo à conquista da emancipação.
Mas, os fantasmas que procuram cercear e acomodar aos interesses do mercado a função da escola e da edução pesam sobre elas de forma preocupante.

1. Debate-se com o fantasma de um pensamento dominantemente virado para o individualismo exacerbado, em prejuízo da prática de uma pedagogia coerente, dialógica e cooperativa. A condição basilar de desenvolvimento de um ato pedagógico reside no facto de haver condições, em contexto de espaço escolar, de exposição, de questionamento, de reflexão e de experimentação.
O acesso ao conhecimento é superficial, momentâneo e desconexo, de consulta a informações, quantas vezes incorretas e descontextualizadas, cujo resultado rondará no mimetismo, ou no plágio. O estudante tem quase sempre um papel de mero recetáculo, tipo consumidor; e, neste caso, a função mediadora e orientadora do professor é residual, ou mesmo descartável, e a ausência do grupo-turma não causa, aparentemente, o menor dano.
 Visa-se o êxito estreito, pela absorção de um conjunto de matérias, cuja eficácia em termos de aquisição de competências, é tão exígua, que dificilmente pode promover a necessária reorientação, no domínio profissional. Raramente fornece elementos essenciais propiciadores  da  autoaprendizagem e do sentido crítico, o pensamento problematizante não é treinado, o necessário lastro cultural é inexistente.
O sentimento de pertença a uma comunidade de iguais perde qualquer significado, os laços afetivos são efémeros, egoístas, descartáveis, como se se visasse uma sociedade reduzida à soma dos individualismos, onde o sentido identitário e coletivo se esboroassem por entre as malhas de uma rede de estímulos predadores do «bem comum», cujo sentido oscila segundo as circunstâncias e as motivações.
No fundo, o que está verdadeiramente em questão é a conceção neo- liberal do mundo, no seu mais desgarrado intuito de manipular o sujeito, de forma a poder mais facilmente ser controlado, muito embora, na aparente superficialidade do quotidiano, ninguém seja impedido de preferir o supermercado A ao supermercado B, a marca de roupa Y, ou os ténis X.  O que verdadeiramente importa é iludir o vazio da  “realidade  consumidor” , seja ele da gama denominada produtos educativos, formativos ou culturais. O que verdadeiramente importa é não pensar.
Os projetos escolares de natureza globalizante e performativa, propulsores da aquisição interdisciplinar dos saberes e de percursos escolares eficientes e substantivos, caldeados por vivências sociais e culturais multifacetadas, chocam, amiúde, com um real impositivo, redutor e unívoco que exalta os mimetismos acríticos.

2. O poder avassalador e totalitário dos meios informáticos e da cultura do numérico parece coartar todas as práticas pedagógicas mediatizadas pela função do professor, a que vem juntar-se, com caráter de inelutabilidade, a desinstitucionalização da escola, substituindo a sua raiz democratizante e participada, por  um conjunto de preceitos  de índole tecnocrático-empresarial que desemboca em rankings destituídos de qualquer sentido de singularidade contextual. Os mega agrupamentos de escolas constituem um dos exemplos mais gritantes de descaracterização da escola, enquanto território educativo, sujeito a um conjunto de regras conflitualmente aceites pelos vários setores que o constituem, com os seus direitos e deveres, mas constituindo uma comunidade de sentido institucional e socialmente reconhecido
Alardeiam-se aos quatro ventos valores universalistas e genéricos  fundadores da condição humana, no entanto, fornece-se um conjunto de saberes oferecido pelo empresariado da formação, em nome da empregabilidade que se  ergue como um  totem do sucesso, dilacerando, pouco a pouco, o tecido social urdido em práticas de convivialidade, de partilha e de contraditório.
Acena-se com a municipalização da educação, em nome da ineficácia e do caráter centralizador e pesado do Estado, desresponsabilizando-o de uma das suas funções constitucionalmente reconhecidas; para iludir os incautos, pinta-se um cenário paradisíaco recheado de conceitos, tão ocos quanto prenunciadores de discutíveis efeitos benéficos, mas gerador,  seguramente, de desigualdades e de retrocessos nas condições materiais e simbólicas oferecidas aos alunos. Não vivemos num país harmoniosamente equilibrado, do ponto de vista dos recursos e das condições de vida das populações; é impensável que dois jovens, um vivendo numa pequena vila de Trás-os- Montes e outro em Lisboa ou em Aveiro, vão poder dispor das mesmas oportunidades educativas e culturais, pese embora o esforço de autarquias e associações de natureza pública.

3. O último fantasma que assombra a escola e a educação, e que está intimamente conectado com o modelo neoliberal, é o «empreendedorismo». No virar do século, o ícone do “micro-pequeno empresário” invadiu todo o discurso mediático-institucional. Não há escola, instituição, empresa, congresso, curso de formação que não apresente o empreendedorismo como o redentor do desemprego, do emprego mal remunerado, do desenvolvimento do país e da independência relativamente ao patronato. Defende-se que as escolas se apliquem para transformar cada aluno num empreendedor, de sucesso, de preferência.
As atividades desenvolvidas em muitas escolas, há dezenas de anos, visavam, e visam,  a promoção da criatividade, da iniciativa, mas também da cooperação e da corresponsabilização, indispensáveis à integração da pessoa humana na sociedade e no exercício da cidadania, cientes de que ela pertence a uma comunidade de outros seres humanos, face aos quais tem direitos e deveres. O empreendedorismo esconde, na realidade, a razão de ser de um modelo de desenvolvimento gerador das anomalias – o desemprego, a precariedade laboral, as políticas austeritárias – de que é o verdadeiro autor, imputando ao desempregado a responsabilidade pela situação em que se encontra. Deste modo, os poderes fácticos, de forma subliminar, dissimulam  a  voragem com que se apropriam  do «bem comum».
A aceitação acrítica desta ideologia, pelos poderes públicos, nomeadamente pelos responsáveis pelos programas escolares e pelos projetos de escola poderão, inadvertidamente, contribuir para a criação de gerações de frustrados profissionais, de seres humanos culpabilizados por eventuais fracassos e desprotegidos percursos de vida.
É notório o grau de desconforto e de resistência de muitos atores envolvidos no processo educativo, perante a ameaça de uma realidade em que  a escola pode perder o pé, dilacerada por interesses conjunturais, alheios à exigência de ensinar a pensar. Como se o terreno escolar pudesse tornar-se movediço e poroso, sem âncoras à vista, sem estratégias de sobrevivência, nem finalidades coerentes com os propósitos que pragmaticamente lhe incumbem. A exemplo, aliás, do manto das incertezas, quanto ao futuro de um mundo em convulsão permanente, em que as fraturas sociais e civilizacionais se aprofundam, não obstante os avanços científicos e tecnológicos alcançados.
4. Não é certo, nem seguro, que a escola possa liderar uma rutura nas forças hegemonizadas pelo capitalismo, gerador de desigualdades e de condições de vida desumanas e desumanizantes. Seria estulto ignorar o poder dos interesses que insidiosamente procuram controlar a escola, reduzindo-a a um sucedâneo reprodutor de injustiças sociais.  A tão propalada  «igualdade de oportunidades»  não é mais do que uma frase sem substância, utilizada para apaziguar as más consciências; apenas esconde, ou a ausência de vontade, ou a incapacidade de promover realmente a igualdade. Mas, sem dúvida que a escola é um aliado indispensável na construção do pensamento crítico, de vias de acesso ao conhecimento problematizador e fecundo.
 Constituirá um ato de resistência, se a prática pedagógica privilegiar o combate sistemático pelo direito de pensar, e desenvolver o espírito crítico, contornando o consumismo acéfalo de resmas de informação e de conhecimentos desconexos e desestruturados, permanentemente despejados pelos meios de comunicação. A consulta seletiva, a mediação reflexiva suscitada pela reabilitação urgente, não só do tempo necessário ao ato de aprender, como do silêncio criador de imaginário, constituem, seguramente, competências maiores indispensáveis  à difícil  tarefa de aprender a viver.
 «Ladino» e Pokémon podem e devem coexistir em contexto escolar. Os meios informáticos, os instrumentos tecnológicos, as pedagogias promotoras de autonomia e de criatividade, as operações de desenvolvimento cognitivo, os livros, o discurso regulador e as plataformas digitais são úteis e emancipatórios, quando encarados como meios e não como fins em si. Em cada momento, a função arbitral do professor agilizará os procedimentos mais apropriados a cada tarefa. A resistência ponderada ao uso avulso e inconsequente de cada um dos instrumentos e ferramentas de que dispõe exige dele uma grande capacidade de liderança e de persuasão.

                                                                       M. Fernanda Campos
                                                                       Setembro, 2016



 (Uma versão foi publicada no último número da Revista «NOVA ÁGORA»)

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