terça-feira, 13 de dezembro de 2016




UM CIGARRO CAI



                                        RECORTES DA VIDA DE CLARICE LISPECTOR





Nota prévia



Este trabalho propõe-se detetar alguns traços significativos da biografia de Clarice Lispector.

 Trata-se de uma leitura temática, orientada pela isotopia da perda, para cuja conformação concorrem, não só a ficção, mas também dados de natureza biográfica.

Do ponto de vista metodológico, selecionaram-se três períodos da vida da escritora – a infância, a separação conjugal e o incêndio que a mutilou; cruzaram-se os textos ficcionais e o estudo documental, retirando a substância suscetível de sustentar uma leitura pessoal, mas não anti-histórica, nem marcadamente subjetivista.



Clarice                                               



                                                                                              Clarice

                                                                                                 Veio de um mistério.

                                                                                                 Partiu para outro.

                                                                                                 Ficamos sem saber a

                                                                                                 essência do mistério.

                                                                                                 Ou o mistério não era essencial,

                                                                                                  era Clarice viajando nele.

                                                                                                                 Carlos Drummond de Andrade



Da abundante produção literária de Clarice Lispector, espalhada pelos  mais diferentes géneros e subgéneros,  não faz parte qualquer autobiografia. No entanto, é consensual que a escritora, durante toda a sua vida, não fez outra coisa senão “escrever-se”, numa prosa vibrante, estranha, caldeada de silêncios e de busca. O carácter reflexivo do seu temperamento, bem como a constante voracidade pela vida, que bebia até à dor, constituíram uma obsessão, uma interrogação permanente sobre o sentido da existência e sobre a alma das coisas.

Outros, escritores, críticos, estudiosos procuram plasmar nos seus textos a “autobiografia” que Clarice foi arquitetando, desde menina, nos pequenos contos recusados por incompreensíveis, nas histórias inventadas para alegrar o pai e as irmãs, nas heteronímias de que se disfarçou, nas personagens cinzeladas como carne, nos efeitos especulares de uma poética oblíqua.

A escritora Ana Miranda ficcionou, de modo muito feliz, um “auto-retrato” onde a autora porventura se reconheceria, se o pudesse ter feito. Clarice, publicado em 1999, vem, parafraseando Jorge Semprun, através do imaginário, tornar a realidade mais real. Sem escamotear que se trata de uma obra ficcional, a escritora traz-nos uma personagem que a cada momento poderia ser encontrada, feita pessoa, em qualquer lugar do imenso Rio de Janeiro.

 Por outro lado, a estruturação da mancha tipográfica – reduzida e envolta no silêncio da folha – incita o leitor à busca de informação biográfica e bibliográfica suscetível de preencher as lacunas e as omissões, para o que dispõe da obra de Moser. Aliás, Clarice há de transformar a sua vida numa busca incessante de si própria, como se, por alquimia secreta de um deus perverso, lhe fosse imposta, como redenção, a construção do puzzle existencial, cujas peças teria de buscar nos e com os outros:

“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.” (in MOSER, 2010: 373).

Por isso, Clarice escancara, as janelas dos sentidos e procura sorver a seiva de um olhar, de um odor, da polifonia de vozes e sons na aporia de ser.

Durante a vida de um cigarro, Clarice mergulha no turbilhão da memória, esgueira-se pelas ruelas do seu Rio, voa até ao coração do longe, lê no olhar dos objectos mensagens e signos, inventa o sabor de palavras novas que logo se comprazem em arquitectar perguntas, perplexidades e linguagens surpreendentes. Regressa à infância e a mesma pergunta que a acompanhou, durante toda a vida, ergue-se perante o olhar perdido na memória da mãe:

-Porque não fui capaz de criar uma história milagrosa que salvasse a minha mãe?

Ou então:

-Que poder evanescente se esconde por detrás dos desenhos das palavras que gosto de inventar, que por isso me pertencem, mas que me fogem?

Noite dentro, imóvel, no terraço do apartamento no Leme Clarice desnuda-se perante os olhos cegos da cidade. A memória chega, mansa, nas volutas do fumo.



Uma infância roubada: a pobreza, a dor e a fuga

Insuficiência do imaginário

Chaya Pinkhasovna nasceu na Ucrânia profunda em 1920, no seio de uma família judia muito pobre e sujeita, como todos os judeus, a métodos segregacionistas. Eram tempos difíceis, aqueles. A 1ª guerra mundial tinha dilacerado aquela região e a Revolução soviética dava os primeiros passos.

Ainda muito pequena, emigrou com os pais para o Brasil, em busca de melhor fortuna.

Aí, a exemplo de outros familiares seus, foi obrigada a mudar de nome e de identidade. Porém, “each man thus appears as the possessor of a rôle, already performed by the ancestors (…), newborn children receive the names of the deceased whose roles, in a sense, they perform again, and  so the community maintains a continuous self-identity “, ( GUSDORF, 1980: 30), e este património ficou para sempre enraizado na alma de Clarice.

“Clarice nasceu numa aldeia perdida no mundo, que nem consta nos mapas, na Ucrânia, aonde ela jamais voltou. Nasceu por acaso, de passagem, com seus olhos ucranianos que parecem folhas sopradas por ventos opostos, para o norte e para o sul.” (Clarice, p. 17).

“Nasci na Ucrânia, terra dos meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando a minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.” (Clarice Lispector, in MOSER, 2010: 9).

Como, já brasileira, em Maceió, no Recife, no Rio de Janeiro, já mulher, pelas ruas do mundo, poderia Clarice desfazer-se do fardo que herdara? Já adulta, evidenciou frequentemente indecisões e imprecisões sobre a sua origem e sobre o local de nascimento, chegando a refugiar-se na mentira. Todos esses sinais comprovam uma vivência existencial perturbadora e incómoda, sempre que era confrontada com o assunto. Dir-se-ia que essa necessidade imperiosa de cortar com o lado obscuro e penoso da sua pequena infância configurava a denegação de uma inelutável perda primigénia que, com teimosa obsessão, procurava colmatar através da reescrita da história do seu nascimento: “Eu estou voltando para o lugar de onde vim. O ideal seria ir até à cidadezinha na Rússia e nascer sob outras circunstâncias.” (in MOSER, op. cit.: 10)

   A mãe, devido à vida miserável, à fome e à violência que sobre ela se abatera na Ucrânia, chegou ao Brasil muito doente e nunca recuperou. Para sobreviver, o pai era obrigado a desempenhar tarefas humilhantes, em função da cultura e da inteligência que possuía.

A família muda para o Recife, quando Clarice tem cinco anos. As condições físicas da mãe agravam-se e a menina assume a responsabilidade de salvá-la, inventando histórias que lhe sussurra ao ouvido, histórias cheias de palavras balsâmicas, salvíficas, no imaginário da autora. Propensa à invenção e à desestruturação da linguagem comum, olha cada termo sob todos os ângulos, materializa-o em objectos que fazem parte do quotidiano, rompe o invólucro opaco das palavras comuns e dos discursos estereotipados, em busca da substância alquímica que haveria de contrariar uma perda iminente.

“- Papai, inventei uma poesia.

- Como é o nome?

-Eu e o Sol. – Sem esperar muito recitou:

-“As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas, mas eu não vi”.

- Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?

Ela olhou-o um segundo. Ele não compreendera…

- O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas…. -. Pausa.

- Posso inventar outra agora mesmo: “Ó sol, vem brincar comigo”. Outra maior:

               

                Vi uma nuvem pequena

                coitada da minhoca

                acho que ela não viu”.
                                                            
(Perto do Coração Selvagem, p. 12)



Muito pequena, Clarice tinha noção da sua incapacidade para ajudar a mãe enferma. As irmãs mais velhas cuidavam dela, mas a menina só podia fazê-lo socorrendo-se do seu dom de criação. Dotada de enorme espírito de religiosidade, Clarice rezava, pedia a Deus que curasse a mãe, inventava pequenas dramatizações que representava, recorrendo a adereços. E todas terminavam, magicamente, com o milagre da cura.

Parafraseando Moser, o poder alquímico do imaginário falhara, mas o pendor para a crença no poder miraculoso das palavras manteve-se:

“Meio século mais tarde, quando Clarice Lispector, ela própria consumida por uma doença terminal, deixou a casa pela última vez, recorreria à mesma táctica. ‘Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris’”. (MOSER, p. 83.).

A primeira perda consuma-se com o desaparecimento da mãe, cuja memória não mais a abandonará, vestida de roupagens, ora doloridas, ora esfusiantes, provocatórias, mentirosas.

A linguagem fora intransitiva, no sentido em que os mundos por ela efabulados, os horizontes de esperança ingénua, desenhados na polifonia dos sons e no traçado certo das palavras brotando como fontes cristalinas e pujantes, solidificou num sofrimento profundo, no prelúdio de uma palavra indizível:

“O que há dentro de Clarice é algo mais forte do que o que ela pode dar ao mundo. O que há dentro dela precisa mais de o mundo lhe ser dado do que o mundo lhe dá.” (Clarice, p. 27).



Tédio e busca incessante do outro lado da linguagem

A perda está intimamente relacionada com o imperativo existencial da satisfação do desejo, pela convicção do sujeito de que a transmutação metafísica do real, através da linguagem, opera a emergência de um sentimento de incompletude que só na «rêverie» encontra o bálsamo redentor.

O misticismo do pensamento de Clarice, a convicção de que um deus ex-máquina corrigiria, de algum modo, os desmandos do inelutável fatum e a fé na ontologia da palavra escrita semeiam a sua obra, consubstanciada em personagens ambivalentes, redondas, antropomórficas.

 Auto-retratos multiformes, autobiografias disfarçadas sob roupagens alheias, ostentação e recolhimento marcam toda a juventude clariceana. Dotada de uma personalidade e de uma inteligência muito fortes, aliadas a uma beleza perturbante, Clarice logo se faz notada, quando chega ao Rio, envolta numa aura de mistério e de surpresa. A voz rouca, o olhar oblíquo e o comportamento pouco adequado para a época chocam, de algum modo, o ambiente carioca, não obstante ter pouco mais de quinze anos.

Aluna distinta, Clarice decide fazer o curso de Direito, não porque quisesse exercer advocacia, mas para reformar as prisões, com confessará anos mais tarde; pela mesma altura, começa a afirmar-se como escritora. Não que fosse fácil, nem que os seus trabalhos fossem fáceis de entender. Aliás, nos meios intelectuais, instalou-se, durante algum tempo, a convicção de que o autor seria um homem.

“Clarice gosta de sentir o ar poeirento, luminoso e estridente da cidade grande. Na cidade grande faz muito barulho para se dormir. Há cinemas, luzes. De repente as luzes se apagam: é o racionamento. Clarice acende velas. Sente-se livre, no escuro, entre milhões de solitários no escuro. À luz da vela, escreve. Livre, solitária, vai pelo caminho da inspiração.” (Clarice, p. 16.)



Por isso, um tédio imenso a habita desde cedo. A aparente inabilidade para se relacionar e conviver, a vertigem do imaginário em contraponto com o real, concorrem para que se refugie no isolamento, no casulo que a inspiração vai tecendo.

 “Clarice nunca foi óbvia. Dava hesitantemente os primeiros passos como escritora, em segredo, ‘criando sua “máscara”, como ela dizia, e com muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma  surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. E a hora da escolha.” (in MOSER: 122).

As duas «Clarices», a Clarice-mulher e a Clarice-escritora», formam duas esfinges, procurando desvendar-se mutuamente e modelar-se uma à outra; mas, contrariamente ao efeito especular do protagonista da autobiografia, o artista e o modelo não coincidem nas descontinuidades espácio-temporais. Por isso, ambas nunca eram óbvias: a literatura era a “vida vivendo” e Clarice-mulher era os outros, a memória e a sua história: “[Seus olhos]  pareciam perscrutar todos os mistérios da vida: profundos, serenos, fixavam-se nas pessoas como se fossem os olhos da consciência. (Olga Borelli, in MOSER, op. cit.: 203).

Entre as duas vidas, os hiatos vão-se sucedendo. Casa com vinte e cinco anos, com um diplomata que a leva pelo mundo. A beleza e a sobriedade de Clarice atraem, mas ela guarda instintivamente uma reserva disfarçada de pose e distanciamento. Em casa, refugia-se na noite, enquanto a cidade desconhecida dorme tranquila. Então, o cigarro vai consumindo, lentamente, a agonia da criação. E Clarice escreve, gemendo. De manhã, já tarde, vai ao terraço e bebe a cidade casa a casa, buscando o alimento que, no silêncio da vigília, haverá de consumir em páginas de vida:

“O coração é selvagem e tem rasgos por onde entra o mundo de fora. (…) O mundo de fora que entra dentro do coração de Clarice é apenas alimento para seu mundo de dentro e nesse jogo labiríntico de fora e de dentro ela cria sua fantasia…” (Clarice:78).



O fascínio do desconhecido da diplomacia estrangeira, quando casou com um diplomata de carreira e com ele viveu diversas e estranhas experiência, começa a esfumar-se, pouco a pouco, com o correr dos anos. Clarice precisa do calor e da luz do Rio, sua cidade de eleição, onde se perde e se encontra. Só em Nova York, junto da família Veríssimo, quebra o gelo do tédio e do desconforto.

Mas o que doía sobremaneira era a dor do exílio.

Surdamente, no veludo das noites mal dormidas, assoladas por uma insónia enganada à força de comprimidos, a náusea da segunda perda vai urdindo a sua teia inexorável. A escrita corre veloz, na vertigem do olhar, no fumo do cigarro. Clarice decide separar-se do marido e voa para o seu Brasil com dois filhos à ilharga. Tem 37 anos.

“Visto agora à distância, o cepticismo acerca do casamento que aparece desde o início da sua carreira, faz com que o fim do seu casamento não seja tão surpreendente como o facto de ter conseguido durar tanto tempo.” (MOSER, id.: 317).

De facto, o seu alter-ego mais autêntico, Joana, personagem central de Perto do Coração Selvagem, confessa que, depois do casamento, “tudo o que você pode fazer é esperar pela morte.

Durante a sua estadia na Europa, Clarice confessa a duplicidade da vida que tem vivido. A máscara que é obrigada a usar, por imposição da condição de mulher de um diplomata, dói terrivelmente e vai destruindo a sua autenticidade. Assume com amargura a superficialidade que a envolve, mima personagens que não conhece, esconde-se sob o manto das palavras gastas, ocas, de circunstância. Mas a alma vai-se esgotando, agonizante.

Arranja um apartamento no Leme:

Ela acha estranho passar de grandes salas de família para o minúsculo apartamento que caberia todo dentro de uma das salas menores. Clarice tem a impressão de voltar às suas verdadeiras proporções. E à liberdade, é claro. Ama e compreende cada vez mais as pessoas, porém sabe que precisa isolar-se delas. O melhor lugar para se distanciar das pessoas é a cidade grande. (Clarice, p. 16.)

O marido, longe, sofre profundamente a separação. Há-de escrever-lhe uma carta profundamente sofrida, pedindo a reconciliação e penitenciando-se pelo involuntário abandono a que a votara, por força dos afazeres profissionais: “Talvez eu devesse me dirigir a Joana e não a Clarice. Perdão, Joana, de não lhe ter dado o apoio e a compreensão que você tinha o direito de esperar de mim.” (in MOSER: 319).

Maury há de esperar por Clarice mais de dez anos. E quando decide refazer a vida na companhia de outra mulher, consuma-se para aquela uma segunda perda. Clarice encara a segunda mulher de Maury como uma invasora que viesse apossar-se de um território que, paradoxalmente, ela considerava como sua propriedade. Os conflitos sucedem-se, a agressividade da escritora toma proporções públicas, o frágil equilíbrio emocional de Clarice fica em carne viva. Finalmente, tem consciência de que o pequeno apartamento do Leme configura a exiguidade da liberdade que pensara ter alcançado: tratava-se de uma «liberdade sitiada», em contraponto com as proporções que o êxito da sua obra ia alcançando.

O cigarro vai descendo, ondulante.



Heteronímia e sobrevivência

Beleza efémera



Clarice dava-se mal com a rotina da vida doméstica. Perdida a qualidade de vida que o casamento lhe proporcionara, o “renascimento” foi doloroso e profundamente agravado pela esquizofrenia do filho mais velho. Para sobreviver, Clarice-escritora desdobra-se numa heteronímia abundante. Retoma a função de jornalista, cria, na «Manchete» um espaço de entrevistas com gente famosa, escreve, sob pseudónimo, para revistas femininas, dá conselhos de beleza, e passeia-se exuberantemente pelos palcos de encontros, colóquios, sessões de lançamento, projectando, sempre altiva, a sua beleza estonteante. A criação literária de Clarice atingira o apogeu, Clarice está em todo o lado, Clarice está sempre ausente, do outro lado do espelho, fixando-se na opacidade do olhar, inspirando palavras, palavras, palavras.

Clarice está cada vez mais só. Na arquitectura da polifonia de vozes encantatórias e evanescentes de contos, romances, crónicas e artigos sobre faits-divers, a escritora reinventa-se e morre, numa labiríntica sucessão de alteridades, de epifanias e abismos:

“Clarice conhece o Rio de Janeiro que ninguém conhece, uma cidade deformada pelo encantamento, uma metrópole transparente, quase invisível, apenas um pressentimento do que poderia ser, se fosse real. Ali, as casas e os edifícios existem para ser olhados, não para ser habitados, porque ‘tudo segue o caminho da inspiração’.

Todos os habitantes do Rio de Clarice são mendigos (ela diz que se sente pior que um mendigo, porque nem mesmo sabe o que pedir). É uma cidade feita de ouro e pedra, que esconde entre as brechas um tesouro. O que é o tesouro do Rio de Janeiro? É preciso olhar bem para encontrá-lo. Está ao alcance dos nossos olhos, mas não de nossas mãos.” (Clarice, p. 12.).

Note-se o olhar singular, irreal e único de uma Clarice impotente, perante o sofrimento alheio, revoltada com as injustiças, mas teimosamente enfrentando o Minotauro esquivo e tortuoso da linguagem, nos labirintos da escrita. Cada partida constitui um ritual iniciático de redenção, perscrutando os sinais confusos do tesouro escondido no coração da cidade, que é, afinal, o seu próprio coração:

É suave a maneira como o mundo de fora se insinua em Clarice. Há constantemente uma disputa entre fora e dentro, que se passa através das janelas.

O mundo de fora chega através de uma janela que se abre, uma brisa, uma folha seca entrevista, um raio de luar que ilumina o peito de um homem, empalidece o quarto, e quando a paisagem é observada ela se torna parte do mundo interior de Clarice.

Os sons são flechas e se cravam nos móveis, nas paredes, no corpo. As árvores são sombras que vigiam secretamente o silêncio do seu quarto. No silêncio do quarto, Clarice se torna menina.” (Clarice: 79).



A primeira infância é o arquétipo perseguido por toda a gente, um momento genial de florescimento do corpo e de abertura ao mundo. A infância é um tempo primordial de dinamismo, de seiva borbulhante de vida, de descoberta e de autenticidade. A infância é pureza, desnudamento, sem máscaras. Na narrativa de vidas, ela apresenta-se como o horizonte de todos os prodígios. Lá, todos os homens e todas as mulheres projectam, envoltos em veludo, sonhos e quimeras. É um tempo em que a alquimia cria o ouro.

Por isso, à medida que o tempo passa, inexorável, Clarice, recusando sempre a autobiografia, metamorfoseia-se em cada personagem que arranca do tesouro escondido sob as pedras da rua e do imaginário, tão real!

Benjamin Moser diz que Clarice Lispector tinha dois vícios: os comprimidos e os cigarros. Serão estes dois ingredientes que irão consumar uma terceira perda – ou antes, duas perdas - que a atirarão definitivamente para uma depressão profunda: perde a beleza do corpo e perde parcialmente a mão direita, a mão criadora, o bem precioso que algum Deus lhe terá dado, o seu “tão certo secretário”.

Em Setembro de 1966, Clarice adormece com o cigarro aceso. As chamas devorar-lhe-ão a mão e largas extensões do corpo. No hospital, onde fica internada por algum tempo, transforma-se numa mulher-dor, mas não perde a aura criadora, porventura mais forte e purificada:

“Quando tiraram os pontos da minha mão operada, por entre os dedos gritei, escreveu Clarice. Dei gritos de dor, e de cólera, pois a dor parece uma ofensa à nossa integridade física. Mas não fui tola. Aproveitei a dor e dei gritos pelo passado e pelo presente. Até pelo futuro gritei, meu Deus.” (in MOSER: 381). 

  

A produção literária vai conhecendo sucessos, no país e no estrangeiro. Não pára de escrever, numa voragem que lhe vai, paulatinamente, consumindo a beleza. A participação em jornais e revistas acentua-se, escreve sobre temas variadíssimos, a família, os filhos, os amigos, a infância, numa linguagem coloquial que os leitores admiram cada vez mais:

Sou tímida mas tenho direito a ter os meus impulsos’, exclamou uma mulher que apareceu à sua porta. ‘O que você escreveu hoje no jornal foi exactamente como eu me sinto; e então eu, que moro defronte de você e assisti o seu incêndio e sei pela luz acesa quando você tem insónia, eu então trouxe um polvo para você.’ (in MOSER: 387).

Durante a ditadura de Costa e Silva, iniciada em 1967, Clarice empenha-se militantemente na luta contra a censura e a repressão cultural. Participa em manifestações e em comícios, subscreve petições e participa em delegações. Uma perda profunda originara uma nova frente de luta pela vida e pela democracia no seu país. Acentua-se, por outro lado, o seu natural pendor misticista e ocultista, exacerbado pelo agravamento da doença do filho Pedro. Consulta um psiquiatra judeu e passa a consultá-lo quase todos dias, durante seis anos. Impõe a si própria um isolamento doentio e mórbido com ao argumento de que ninguém a ama. Toma doses significativas de tranquilizantes  e de antidepressivos.

Clarisse adquire a fama de excêntrica e desadaptada. Já perto do fim, Clarice dedica-se à pintura, enjoada que estava de literatura.

“Pintei um quadro que uma amiga me aconselhou a não olhar porque me faria mal. Concordei. Porque neste quadro que se chama ‘medo’ eu conseguira pôr para fora de mim, quem sabe se magicamente, todo o medo pânico de um ser no mundo.” (in MOSER: 474).

O tema da morte, sempre presente em toda a obra da escritora, surge com mais frequência, em declarações públicas e nos escritos. Clarice pressente o fim.

O Outono aproxima-se na ruga de um olhar fugidio, na mão que o fogo transformara em garra cinzenta. Clarisse está cansada de si. As forças esvaem-se, os sentidos esbatem-se, a mão treme.

O cigarro vai caindo, caindo, caindo…



Remate

“A cidade é vista do décimo terceiro andar de um edifício branco revestido de mármore. É madrugada de lua cheia.

Clarice fuma, no parapeito da área de serviço. A área de serviço é um  emaranhado de vidraças, esquadrias, varais, manchas de chuva, janelas contra janelas. Um monstruoso interior de uma máquina de viver.

Clarice joga a ponta do cigarro na cidade. Ela procura a amplidão.” ( Ana Miranda, Clarice)



                                                                                     


Sem comentários:

Enviar um comentário