RECENSÃO CRÍTICA
AMARTYA SEN, La démocratie des autres
Pourquoi la liberté n’est pas une
invention de l’Occident
Éditions
Payot & Rivages , Paris, 2005
LA DÉMOCRATIE DES AUTRES
Sob o primeiro título em epígrafe,
reúnem-se dois textos da autoria do Prémio Nobel da Economia, os quais,
distantes embora no tempo de génese, dialogam entre si e condensam o pensamento
político e cultural do autor, caldeado pelas influências culturais ocidentais e
pelas suas raízes asiáticas. Ambos os textos plasmam a heterodoxia não radical
de uma visão dos problemas actuais, para cuja solução pouco tem contribuído a
doutrina dominante, quer no mundo ocidental, quer noutras partes do globo. Posicionando-se teoricamente na periferia das
ideologias dominantes, mas não renegando o seu contributo civilizacional,
Amartya Zen debruça-se sobre a complexidade humana, social e económica, na
busca de um paradigma capaz de conflituar positivamente com valores essenciais
como a liberdade, a democracia, o desenvolvimento sustentável, a igualdade e a
felicidade humana. Limitando-se os dois textos a privilegiar os pilares estruturantes da
condição humana, ao longo da sua história, terá o leitor de buscar nas obras Inequality Reexamined e Development as Freedom o aprofundamento teórico e metodológico das
respostas apresentadas pelo autor.
Oriundo de um subcontinente
cruzado por culturas e práticas organizativas díspares e conflituais, com
enormes assimetrias económicas, Amartya Sen confronta a sua experiência de vida
com o modelo ocidental e dedica a vida ao estudo das debilidades planetárias,
procurando gizar um modelo que tivesse presente um horizonte de esperança para
toda a humanidade.
O primeiro texto, intitulado na
versão francesa «Les racines globales de la démocratie – pourquoi la liberté
n’est pas une invention de l’Occident», publicado, numa versão mais reduzida,
pela revista «New Republic», em 2003), demonstra a universalidade da
democracia, criticando quantos limitam a sua génese e a sua prática ao reduto
europeu que, no seu expansionismo problematiza visões políticas diferentes
sobre a oportunidade da democracia em países historicamente encarados como
radicando em moldes sociais muito distantes do modelo ocidental. Concluindo
pela superficialidade de quantos entendem que a democracia, enquanto modelo
social e político, pode ter um efeito perverso em populações desprotegidas dos
países mais pobres, o Prémio Nobel pugna por uma visão oposta, sustentando a
bondade da liberdade, da democracia e do pluralismo, precisamente na busca de
soluções globais que contrariem as debilidades estruturais de que são vítimas
largos sectores de seres humanos.
Recorre aos movimentos, às lutas
e práticas pelo ideal democrático, ao longo da história milenar dos povos até
aos nossos dias, quer em África, quer no Oriente e sublinha o pensamento de historiadores,
filósofos e políticos do Ocidente e do Oriente ( Índia, China, Japão),
pioneiros de valores democráticos e universais, susceptíveis de serem vividos
por todos os povos, independentemente da raça, da religião e da cultura a que
pertençam, e do grau de desenvolvimento económico dos seus países.
Sublinha ainda a disparidade de actuação de
regimes autoritários e democráticos, perante problemas endémicos, como a fome e
a doença, e compara, para tanto, a realidade política da China e da Índia, em
meados do século passado. Conclui que a luta contra carências básicas tem
maiores probabilidades de êxito num regime democrático, onde há pluralismo
político, do que sob um regime autoritário ou ditatorial, por mais bem-intencionados
que sejam os seus líderes.
Finalmente, Amartya Sen enriquece
o conceito ocidentalizado de democracia, geralmente circunscrito às suas
práticas formais, aprofunda-o com a variedade de formas de participação popular
na definição de políticas públicas que visem o interesse individual e comum,
considerando-a indissociável do debate público. Pensar que as mazelas da
democracia podem ser resolvidas com menos democracia, apenas enfraquece a
robustez do povo e abre a porta a males maiores e mais dolorosos.
Socorre-se do conceito de
«exercício da razão pública», de John Rawls, que explicita mais adiante,
aproximando-a da noção de «esfera pública» de Habermas, no sentido em que, em
democracia, cada indivíduo tem liberdade de expressão e de opinião, coteja-a
com a dos outros membros da sociedade e dessa interacção nascerá uma visão que
satisfaça o maior número de cidadãos, no sentido do bem comum. Ou seja, pela
livre discussão, o indivíduo projecta-se enquanto cidadão activo, sem escamotear
a sua individualidade. Aliás, esta leitura ganha maior relevo à luz das obras
de Amartya Sem citadas acima, onde desenvolve conceitos-chave e caminhos
alternativos ao capitalismo neoliberal e aos modelos próximos daquele que
vigorou na ex-União Soviética . Para
Sen, a democracia, enquanto forma de regime e de organização das sociedades,
foi e é praticada à dimensão global, alimentada por sinergias díspares
decorrentes do desenvolvimento específico do xadrez cultural e civilizacional
dos diferentes povos.
Simultaneamente, aborda
criticamente a visão ocidentalizada e largamente dominante, quanto a si
incorrecta e historicamente desmentida, de que a democracia mergulha as suas
raízes na civilização europeia, excluindo ou menosprezando práticas
democráticas vivenciadas por povos diferentes ao longo da sua história. A
cultura política eurocêntrica teve um papel importante difusão do espírito
libertário da Revolução Francesa, serviu de modelo a movimentos emancipativos e
independentistas, mas ignorou com altivez vivências e princípios identitários
de recorte diferente. A Europa e o mundo ocidental assumiram a sua supremacia,
nem sempre de modo honroso e justo. Não aprofundando a matriz eurocêntrica, nem
a sua dimensão político-económica, não ignora, porém, os malefícios para grande
parte do mundo não ocidental, nem os objectivos hegemónicos que lhe subsumiam,
comungando de alguns pontos de vista de Samir Amin explanados no livro L’Eurocentrisme.
Contesta ainda opiniões de
políticos e historiadores, os quais dão especial relevo a modelos autoritários
vigentes por largos períodos em países do continente asiático e africano, neles
ignorando, ou desconsiderando, a existência de instituições democráticas
sustentadas historicamente.
Encara, por isso, como injustas e
redutoras, as correntes que olham para certas civilizações como incapazes de
entenderem o paradigma ocidental, ou de acabarem por ser vítimas do modelo
democrático, que perturbaria o necessário desenvolvimento económico; neste
caso, um regime autoritário poderia obviar a desvios dos objectivos tendentes a
satisfazer as necessidades básicas das populações carenciadas, condição prévia
à participação democrática.
LA
DÉMOCRATIE COMME VALEUR UNIVERSELLE
O segundo texto, apresentado na Global Conference of Democracy, em Nova
Deli, em Fevereiro de 1999 e publicado no Journal
of Democracy, da Johns Hopkins University Press , em Julho seguinte, e
publicado em francês sob o título «La démocracie comme valeur universelle», o
autor aborda a democracia do século XX, lançando o olhar sobre os
acontecimentos marcantes para a história e o futuro da humanidade e conclui que
a mais bela herança que aqueles cem anos legaram aos vindouros foi a ascensão
da democracia, como única forma de governo aceitável.
Pretende o autor demonstrar que a
democracia é um “sistema natural e geral” e constitui, portanto, um valor
universal, apto a corresponder qualquer modelo de sociedade existente, não
conflituando com crenças, nem com doutrinas filosóficas ou económicas. A realidade
confirma este princípio, esgotada que está a tese novecentista, segundo a qual
haveria povos que não estariam “maduros” para viverem em democracia. A
diversidade de culturas e de credos, bem como o subdesenvolvimento, presentes
no seu país, no momento da independência, constituem prova evidente da
caducidade daquela tese. Aos que defendem a irredutibilidade de algumas
culturas, como o Islão, aos valores democráticos e à liberdade individual,
contrapõe o autor a doutrina de pensadores orientais abertos e propugnadores de
ideais e vivências consonantes com o pensamento ocidental
Visa o autor doutrinas, tão
controversas como perigosas, expendidas, por exemplo, por Samuel P. Huntington,
com a obra Choque de Civilizações, segundo o qual a cultura islâmica mais radical
e a cultura ocidental são incompatíveis; ou regimes asiáticos de cariz
marcadamente autoritário, para os quais o funcionamento democrático é contrário
ao processo de acumulação e de desenvolvimento económico. A seu ver, estas
teses não estão tão distantes quanto à primeira vista se afigura, pois ambas
têm da democracia uma perspectiva estreita, reduzindo-a ao mero exercício do
direito de voto e desconsiderando as práticas societais de intervenção pública,
através de movimentos organizados em função do bem pessoal e geral. Por outro
lado, a história ocidental também é tristemente rica em práticas totalmente
alheias ao ideal democrático.
Outros alegam que haverá, tanto
maior desenvolvimento económico, quanto mais arredados da liberdade, acenando
com o sucesso de certos países asiáticos, segundo dados e estudos considerados
pelo autor parcelares, episódicos e selectivos, que não provam com
credibilidade a contradição estrutural entre democracia e desenvolvimento, tese
que o autor desenvolve com detalhe na obra Development
as Freedom. Considera ainda que os métodos utilizados pela investigação
económica não são ingénuos nem destituídos de granu salis.
Aceitando a sociedade de mercado
regulado, entende dever a mesma subordinar-se ao bem comum, em consonância com
políticas económicas úteis, sustentáveis e mais humanas, e no respeito pelos
preceitos democráticos e cívicos. Os efeitos nefastos que se abateram sobre
algumas economias asiáticas, em finais dos anos noventa, deveu-se,
fundamentalmente, a jogos especulativos, a opções financeiras incorrectas e à
falta de transparência, a que se juntou, precisamente, a inexistência das instituições
democráticas e da participação pública.
As consequências foram dramáticas
para as populações desprotegidas e mais carenciadas, entregues a si próprias,
sem mecanismos potenciadores de uma voz comum opositora à voragem de poderes
que lhes escapam, já que a democracia está ausente das suas vidas, nos bons e
nos maus momentos. O conceito de “exercício da razão pública”, reiteradamente
utilizado e aprofundado pelo economista indiano, em todos os escritos, sob esta
ou outra tradução verbal, robustece-se, a partir do exame dos valores que a
democracia pressupõe.
No conceito de democracia como
valor universal encaixam outros valores, sem as quais se resvala para o
formalismo tão característico da cultura ocidental, em particular nos últimos
trinta anos. Um decorre da “importância intrínseca da participação política e
da liberdade na existência humana”; o valor instrumental legitima o direito dos
cidadãos no controlo das politicais estatais; finalmente, o papel construtivo
da democracia na projecção de valores individuais e colectivos, e na assunção
de uma cidadania responsável. O autor não encontra na argumentação crítica da
democracia enquanto valor universal razões para contemporizar com ela; pelo
contrário, a doutrina em causa mistifica ou ignora a complexidade e a riqueza
das várias culturas que, ao longo da sua existência, co-habitaram ou
conflituaram dialecticamente. Os radicalismos episodicamente emergentes não conseguem
sustentar com razoabilidade visões maniqueístas, porquanto “é a heterogeneidade
dos valores que parece caracterizar a maior parte, se não a totalidade, das
culturas mais importantes.”
Numa linguagem transparente e
escorreita, estes dois artigos questionam ideias feitas e preconceitos,
estimulam o sentido crítico e abrem as portas à curiosidade intelectual. Amartya
Sen usa com argúcia um apurado sentido pedagógico da argumentação, despido de
silogismos ou de sofismas. À luz da explicação metodológica dos conceitos de
democracia, de liberdade, de debate público, e de individualidade, poderá o
leitor abalançar-se na abordagem das suas obras maiores, certo de que as suas
expectativas não sairão defraudadas. É certo que o pensamento de Amartya Sen
dialoga com o de outros economistas, sociólogos e historiadores não alinhados
com o pensamento dominante. Edgar Morin, em Penser
l’Europe e Jaques Sapir, em Les
économistes contre la démocratie comungam, por vezes segundo ópticas
específicas e naturalmente plurais, da necessidade de repensar aqueles
conceitos, em função do complexo xadrez humano que, afinal, constitui a grande
riqueza da humanidade.
Finalmente, Amartya Sen propõe,
subliminarmente, a defesa da história e das relações estreitas que esta mantém
com a memória, no respeito por preceitos de rigor e de transversalidade das
matérias que comungam do mesmo modelo epistemológico, e a denúncia de correntes
“antidemocratistas” que, segundo Jacques Rancière, promovem o “reforço do poder
das oligarquias e o incremento das desigualdades”.
Maria
Fernanda Campos
2011
Sem comentários:
Enviar um comentário