domingo, 1 de janeiro de 2017




RECENSÃO CRÍTICA

AMARTYA SEN, La  démocratie des autres
                              Pourquoi la liberté n’est pas une invention de l’Occident
                                                                       Éditions Payot & Rivages , Paris, 2005

LA DÉMOCRATIE DES AUTRES

Sob o primeiro título em epígrafe, reúnem-se dois textos da autoria do Prémio Nobel da Economia, os quais, distantes embora no tempo de génese, dialogam entre si e condensam o pensamento político e cultural do autor, caldeado pelas influências culturais ocidentais e pelas suas raízes asiáticas. Ambos os textos plasmam a heterodoxia não radical de uma visão dos problemas actuais, para cuja solução pouco tem contribuído a doutrina dominante, quer no mundo ocidental, quer noutras partes do globo.  Posicionando-se teoricamente na periferia das ideologias dominantes, mas não renegando o seu contributo civilizacional, Amartya Zen debruça-se sobre a complexidade humana, social e económica, na busca de um paradigma capaz de conflituar positivamente com valores essenciais como a liberdade, a democracia, o desenvolvimento sustentável, a igualdade e a felicidade humana. Limitando-se os dois textos a  privilegiar os pilares estruturantes da condição humana, ao longo da sua história, terá o leitor de buscar nas obras Inequality Reexamined e Development as Freedom  o aprofundamento teórico e metodológico das respostas apresentadas pelo autor.
Oriundo de um subcontinente cruzado por culturas e práticas organizativas díspares e conflituais, com enormes assimetrias económicas, Amartya Sen confronta a sua experiência de vida com o modelo ocidental e dedica a vida ao estudo das debilidades planetárias, procurando gizar um modelo que tivesse presente um horizonte de esperança para toda a humanidade.
O primeiro texto, intitulado na versão francesa «Les racines globales de la démocratie – pourquoi la liberté n’est pas une invention de l’Occident», publicado, numa versão mais reduzida, pela revista «New Republic», em 2003), demonstra a universalidade da democracia, criticando quantos limitam a sua génese e a sua prática ao reduto europeu que, no seu expansionismo problematiza visões políticas diferentes sobre a oportunidade da democracia em países historicamente encarados como radicando em moldes sociais muito distantes do modelo ocidental. Concluindo pela superficialidade de quantos entendem que a democracia, enquanto modelo social e político, pode ter um efeito perverso em populações desprotegidas dos países mais pobres, o Prémio Nobel pugna por uma visão oposta, sustentando a bondade da liberdade, da democracia e do pluralismo, precisamente na busca de soluções globais que contrariem as debilidades estruturais de que são vítimas largos sectores de seres humanos.
Recorre aos movimentos, às lutas e práticas pelo ideal democrático, ao longo da história milenar dos povos até aos nossos dias, quer em África, quer no Oriente e sublinha o pensamento de historiadores, filósofos e políticos do Ocidente e do Oriente ( Índia, China, Japão), pioneiros de valores democráticos e universais, susceptíveis de serem vividos por todos os povos, independentemente da raça, da religião e da cultura a que pertençam, e do grau de desenvolvimento económico dos seus países.
 Sublinha ainda a disparidade de actuação de regimes autoritários e democráticos, perante problemas endémicos, como a fome e a doença, e compara, para tanto, a realidade política da China e da Índia, em meados do século passado. Conclui que a luta contra carências básicas tem maiores probabilidades de êxito num regime democrático, onde há pluralismo político, do que sob um regime autoritário ou ditatorial, por mais bem-intencionados que sejam os seus líderes.
Finalmente, Amartya Sen enriquece o conceito ocidentalizado de democracia, geralmente circunscrito às suas práticas formais, aprofunda-o com a variedade de formas de participação popular na definição de políticas públicas que visem o interesse individual e comum, considerando-a indissociável do debate público. Pensar que as mazelas da democracia podem ser resolvidas com menos democracia, apenas enfraquece a robustez do povo e abre a porta a males maiores e mais dolorosos.
Socorre-se do conceito de «exercício da razão pública», de John Rawls, que explicita mais adiante, aproximando-a da noção de «esfera pública» de Habermas, no sentido em que, em democracia, cada indivíduo tem liberdade de expressão e de opinião, coteja-a com a dos outros membros da sociedade e dessa interacção nascerá uma visão que satisfaça o maior número de cidadãos, no sentido do bem comum. Ou seja, pela livre discussão, o indivíduo projecta-se enquanto cidadão activo, sem escamotear a sua individualidade. Aliás, esta leitura ganha maior relevo à luz das obras de Amartya Sem citadas acima, onde desenvolve conceitos-chave e caminhos alternativos ao capitalismo neoliberal e aos modelos próximos daquele que vigorou na ex-União Soviética . Para Sen, a democracia, enquanto forma de regime e de organização das sociedades, foi e é praticada à dimensão global, alimentada por sinergias díspares decorrentes do desenvolvimento específico do xadrez cultural e civilizacional dos diferentes povos.
Simultaneamente, aborda criticamente a visão ocidentalizada e largamente dominante, quanto a si incorrecta e historicamente desmentida, de que a democracia mergulha as suas raízes na civilização europeia, excluindo ou menosprezando práticas democráticas vivenciadas por povos diferentes ao longo da sua história. A cultura política eurocêntrica teve um papel importante difusão do espírito libertário da Revolução Francesa, serviu de modelo a movimentos emancipativos e independentistas, mas ignorou com altivez vivências e princípios identitários de recorte diferente. A Europa e o mundo ocidental assumiram a sua supremacia, nem sempre de modo honroso e justo. Não aprofundando a matriz eurocêntrica, nem a sua dimensão político-económica, não ignora, porém, os malefícios para grande parte do mundo não ocidental, nem os objectivos hegemónicos que lhe subsumiam, comungando de alguns pontos de vista de Samir Amin explanados no livro L’Eurocentrisme.
Contesta ainda opiniões de políticos e historiadores, os quais dão especial relevo a modelos autoritários vigentes por largos períodos em países do continente asiático e africano, neles ignorando, ou desconsiderando, a existência de instituições democráticas sustentadas historicamente.
Encara, por isso, como injustas e redutoras, as correntes que olham para certas civilizações como incapazes de entenderem o paradigma ocidental, ou de acabarem por ser vítimas do modelo democrático, que  perturbaria  o necessário desenvolvimento económico; neste caso, um regime autoritário poderia obviar a desvios dos objectivos tendentes a satisfazer as necessidades básicas das populações carenciadas, condição prévia à participação democrática.



LA DÉMOCRATIE COMME VALEUR UNIVERSELLE

O segundo texto, apresentado na Global Conference of Democracy, em Nova Deli, em Fevereiro de 1999 e publicado no Journal of Democracy, da Johns Hopkins University Press , em Julho seguinte, e publicado em francês sob o título «La démocracie comme valeur universelle», o autor aborda a democracia do século XX, lançando o olhar sobre os acontecimentos marcantes para a história e o futuro da humanidade e conclui que a mais bela herança que aqueles cem anos legaram aos vindouros foi a ascensão da democracia, como única forma de governo aceitável.
Pretende o autor demonstrar que a democracia é um “sistema natural e geral” e constitui, portanto, um valor universal, apto a corresponder qualquer modelo de sociedade existente, não conflituando com crenças, nem com doutrinas filosóficas ou económicas. A realidade confirma este princípio, esgotada que está a tese novecentista, segundo a qual haveria povos que não estariam “maduros” para viverem em democracia. A diversidade de culturas e de credos, bem como o subdesenvolvimento, presentes no seu país, no momento da independência, constituem prova evidente da caducidade daquela tese. Aos que defendem a irredutibilidade de algumas culturas, como o Islão, aos valores democráticos e à liberdade individual, contrapõe o autor a doutrina de pensadores orientais abertos e propugnadores de ideais e vivências consonantes com o pensamento ocidental 
Visa o autor doutrinas, tão controversas como perigosas, expendidas, por exemplo, por Samuel P. Huntington, com a obra Choque de Civilizações, segundo o qual a cultura islâmica mais radical e a cultura ocidental são incompatíveis; ou regimes asiáticos de cariz marcadamente autoritário, para os quais o funcionamento democrático é contrário ao processo de acumulação e de desenvolvimento económico. A seu ver, estas teses não estão tão distantes quanto à primeira vista se afigura, pois ambas têm da democracia uma perspectiva estreita, reduzindo-a ao mero exercício do direito de voto e desconsiderando as práticas societais de intervenção pública, através de movimentos organizados em função do bem pessoal e geral. Por outro lado, a história ocidental também é tristemente rica em práticas totalmente alheias ao ideal democrático.
Outros alegam que haverá, tanto maior desenvolvimento económico, quanto mais arredados da liberdade, acenando com o sucesso de certos países asiáticos, segundo dados e estudos considerados pelo autor parcelares, episódicos e selectivos, que não provam com credibilidade a contradição estrutural entre democracia e desenvolvimento, tese que o autor desenvolve com detalhe na obra Development as Freedom. Considera ainda que os métodos utilizados pela investigação económica não são ingénuos nem destituídos de granu salis.
Aceitando a sociedade de mercado regulado, entende dever a mesma subordinar-se ao bem comum, em consonância com políticas económicas úteis, sustentáveis e mais humanas, e no respeito pelos preceitos democráticos e cívicos. Os efeitos nefastos que se abateram sobre algumas economias asiáticas, em finais dos anos noventa, deveu-se, fundamentalmente, a jogos especulativos, a opções financeiras incorrectas e à falta de transparência, a que se juntou, precisamente, a inexistência das instituições democráticas e da participação pública.
As consequências foram dramáticas para as populações desprotegidas e mais carenciadas, entregues a si próprias, sem mecanismos potenciadores de uma voz comum opositora à voragem de poderes que lhes escapam, já que a democracia está ausente das suas vidas, nos bons e nos maus momentos. O conceito de “exercício da razão pública”, reiteradamente utilizado e aprofundado pelo economista indiano, em todos os escritos, sob esta ou outra tradução verbal, robustece-se, a partir do exame dos valores que a democracia pressupõe.
No conceito de democracia como valor universal encaixam outros valores, sem as quais se resvala para o formalismo tão característico da cultura ocidental, em particular nos últimos trinta anos. Um decorre da “importância intrínseca da participação política e da liberdade na existência humana”; o valor instrumental legitima o direito dos cidadãos no controlo das politicais estatais; finalmente, o papel construtivo da democracia na projecção de valores individuais e colectivos, e na assunção de uma cidadania responsável. O autor não encontra na argumentação crítica da democracia enquanto valor universal razões para contemporizar com ela; pelo contrário, a doutrina em causa mistifica ou ignora a complexidade e a riqueza das várias culturas que, ao longo da sua existência, co-habitaram ou conflituaram dialecticamente. Os radicalismos episodicamente emergentes não conseguem sustentar com razoabilidade visões maniqueístas, porquanto “é a heterogeneidade dos valores que parece caracterizar a maior parte, se não a totalidade, das culturas mais importantes.” 

Numa linguagem transparente e escorreita, estes dois artigos questionam ideias feitas e preconceitos, estimulam o sentido crítico e abrem as portas à curiosidade intelectual. Amartya Sen usa com argúcia um apurado sentido pedagógico da argumentação, despido de silogismos ou de sofismas. À luz da explicação metodológica dos conceitos de democracia, de liberdade, de debate público, e de individualidade, poderá o leitor abalançar-se na abordagem das suas obras maiores, certo de que as suas expectativas não sairão defraudadas. É certo que o pensamento de Amartya Sen dialoga com o de outros economistas, sociólogos e historiadores não alinhados com o pensamento dominante. Edgar Morin, em Penser l’Europe e Jaques Sapir, em Les économistes contre la démocratie comungam, por vezes segundo ópticas específicas e naturalmente plurais, da necessidade de repensar aqueles conceitos, em função do complexo xadrez humano que, afinal, constitui a grande riqueza da humanidade.
Finalmente, Amartya Sen propõe, subliminarmente, a defesa da história e das relações estreitas que esta mantém com a memória, no respeito por preceitos de rigor e de transversalidade das matérias que comungam do mesmo modelo epistemológico, e a denúncia de correntes “antidemocratistas” que, segundo Jacques Rancière, promovem o “reforço do poder das oligarquias e o incremento das desigualdades”.  
                                                                                  Maria Fernanda Campos
                                                                                   2011










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