domingo, 26 de abril de 2020

ABRIL EM FLOR

A data comemorativa da Revolução dos Cravos foi ontem.
O espírito da mensagem do 25 de Abril acompanha-me diariamente e com ele espero continuara a viver.

Abril é sempre uma flor que se vai abrindo e inscrevendo nas suas pétalas as marcas de um combate permanente.


Publico hoje o testemunho pessoal que prestei ao grupo 25 DE ABRIL À JANELA, recordando as enormes e perigosas vicicitudes que se cruzaram na minha vida, e na de tantos outros resistentes, durante a ditadura. 




ABRIL EM FLOR

Os tempos eram sombrios, antes de 25 de abril. Vivíamos, em casa e na família, com o coração nas mãos, em sobressalto e com enorme insegurança.
As paredes tinham ouvidos hostis, os olhares e as movimentações suspeitas infiltravam-se pelos interstícios da nossa militância cultural, cívica e profissional.
Os espaços de intervenção eram diminutos e vigiados.
A reforma Veiga Simão, lançada em 1970, gerou algumas oportunidades de debate sobre os rumos da educação e da escola. Nessa altura, já professora, envolvi-me dos Grupos de Estudos, dinamizados por professores provenientes dos movimentos estudantis e por figuras marcantes do ensino, da ciência e da cultura, conotados, de forma abrangente, com a Oposição Democrática. Embora consentido, o movimento dos professores foi altamente vigiado. A suposta e apregoada Primavera era uma quimera, esmagada entre os que, afetos ao regime, queriam dar um ar de folga, e os ultras, ciosos de uma política mais salazarenta e repressiva.
No início desse mesmo ano, criou-se, em Coimbra, uma Editora Livreira (que viria, mais tarde, a chamar-se Centelha), por impulso de um número significativo dos dirigentes da Crise de 69, ligados ao CR, a que se foram juntando muitos democratas e que contribuíram para que este tipo de intervenção chegasse ao 25 de Abril.
 O processo de legalização da Editora foi muito penoso e prolongado no tempo, por via das obstruções da Pide e da lei. Mas não ficámos parados: inventámos uma figura curiosa para a publicação das obras que, entretanto, íamos traduzindo: “edição do autor da tradução”. O primeiro livro a ver a luz do dia era da autoria de Rosa Luxemburgo, «Greve de Massas, Partido e Sindicatos», por mim traduzido, mas como eu era professora, para não arriscar qualquer sanção que fizesse perigar o meu ganha-pão, a edição foi publicada em nome de Rui Santos.
Aliás, instituiu-se que todos/as  os/as tradutores/as de livros pertencentes à Função Pública fossem resguardados, aparecendo como editor(a) da tradução o(a) respetivo(a) cônjuge ou companheiro(a).
O segundo livro a ver a luz do dia foi «O Canto e as Armas», de Manuel Alegre, cuja 1ª edição, sob a chancela da Nova Realidade , fora apreendida pela Pide. Os holofotes da censura e da polícia política aprimoraram o cerco à editora e aos editores. A impressão das obras (maioritariamente marxistas) era uma verdadeira aventura. As tipografias de confiança que se expunham eram escassíssimas. Tratava-se de uma verdadeira luta entre o gato e o rato. Houve, pelo menos, uma edição que foi apreendida na própria tipografia.
 Não era, pois, estranho que se vivessem tempos de enorme angústia e incerteza. A espada pendia sobre a cabeça de editores, tradutores e autores, muitos dos quais tinham outros tipos de intervenção contra o regime. A liberdade consentida estava sempre por um fio. As vidas, os sonhos, as lutas afiguravam-se como intransitivas em alturas de maior frustração.
Na Páscoa que antecedeu o 25 de Abril, um oficial da marinha, figura cimeira do Movimento dos Capitães (viemos, depois a constatar), numa conversa informal sobre o estado das coisas, deixou uma ligeira mensagem de esperança: havia movimentações significativas e bem estruturadas no seio das FFAA; quem sabe? qualquer dia…
Dias depois, um dia “inicial inteiro e limpo” (citando Sophia) marcou para sempre a nossa História.
A revolução de abril restituiu a dignidade a um povo amordaçado. A cortina de chumbo caiu finalmente e todos pudemos olhar o sol em toda a sua magia.
O medo, as palavras sussurradas, as negaças à censura e à repressão esvaíram-se, sabido que o golpe visava a instauração de um regime democrático e o fim da guerra colonial.
As madrugadas surgiram serenas, silenciaram-se as botas pesadamente ameaçadoras que, cedo, tentavam derrubar as portas da nossa privacidade e dos nossos sonhos inquietos.
E nós continuamos a viver a esperança de Salgueiro Maia, de Melo Antunes, de Otelo…
A nossa esperança é a nossa luta.
Por um mundo progressivamente mais justo e promissor.

                               Maria Fernanda Campos
                                                                              22/4/2020

Sem comentários:

Enviar um comentário