sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

PARA NUNCA ESQUECER AUSCHWITZ

                                                       

         “Um dia, num desses vagões em que havia sobreviventes, quando afastaram o entulho dos cadáveres gelados, muitas vezes colados uns aos outros pelas roupas enregeladas e hirtas, descobriram um grupo de crianças judias. De súbito, no cais da estação, em cima da neve, no meio das árvores cobertas de neve, viu-se um grupo de crianças judias, umas quinze, pouco mais ou menos, olhando à sua roda de olhos esgazeados, olhando para os cadáveres amontoados como troncos de árvores já descascados em pilhas na berma das estradas, aguardando serem transportados para algures, olhando as árvores e a neve em cima das árvores, olhando como as crianças costumam olhar. E os S. S., primeiro, ficaram com ar aparvalhado, como se não soubessem que fazer daquelas crianças de oito a doze anos, pouco mais ou menos, ainda que algumas, graças à sua extrema magreza, à expressão do seu olhar, tivessem aspecto de velhas. Mas os S. S., dir-se-ia, antes de mais nada, que não sabiam que fazer dessas crianças e reuniram-nas a um canto, talvez para terem tempo de pedir instruções, enquanto escoltavam pela grande avenida as poucas dezenas de adultos sobreviventes do comboio. E parte desses sobreviventes ainda tinha tempo de morrer antes de chegar à porta da entrada do campo. Lembro-me que se viam certos desses sobreviventes cair no caminho, como se as suas vidas em vigia no amontoado dos cadáveres gelados dos vagões bruscamente se extinguissem, alguns caíam direitos como árvores fulminadas, a todo o comprimento, sobre a neve suja da avenida e aqui e ali lamacenta, no meio da neve imaculada, sob as grandes faias palpitantes, outros caíam primeiro de joelhos, tentando levantar-se, para se arrastarem ainda alguns metros, ficando por fim estendidos, braços abertos, mãos descarnadas enterradas na neve, numa derradeira tentativa, dir-se-ia, para se arrastarem ainda alguns centímetros para essa porta, lá diante, como se essa porta fosse o final da neve e do Inverno e da morte. Mas, finalmente, no cais, da estação já não havia senão aquelas quinze crianças judias. Os S. S. voltaram então à carga, deviam ter recebido instruções precisas, ou então tinham-lhes dado carta branca, talvez lhes tivessem dado autorização para improvisarem a maneira de chacinar aquelas crianças. Seja como for, voltaram prontos para tudo, com cães, e riam muito, soltavam graçolas que os faziam torcer-se de riso. Formaram arco de círculo e empurraram diante de si, ao longo da grande avenida, as quinze crianças judias. Lembro-me, os garotos olhavam à sua roda, olhavam para os S. S., devem ter pensado, ao princípio, que os escoltavam simplesmente até ao campo, como tinham visto fazer aos adultos, havia pouco. Mas os S. S. soltaram os cães e puseram-se a zurzir as crianças a golpes de matraca, para obrigá-las a correr, para darem início àquela caçada às lebres na grande avenida, aquela caçada por eles inventada ou que lhes tinham ordenado que organizassem, e as crianças judias, zurzidas pelas matracas, atormentadas pelos cães aos pulos em volta delas, mordendo-as nas pernas, sem ladrar nem rosnar, eram cães amestrados, as crianças judias puseram-se a correr pela grande avenida fora, direitas à porta do campo. Talvez nesse momento ainda não tivessem compreendido o que as aguardava, talvez tivessem pensado que se tratava de uma derradeira partida, antes de as deixarem entrar no campo. E as crianças corriam, com os seus barretinhos de grandes palas, enterrados até às orelhas, e as suas perninhas moviam-se atabalhoadamente, ao mesmo tempo lentas e aos sacões, como no cinema quando se projectam velhos filmes mudos, como nos pesadelos em que corremos o mais que é possível sem avançarmos um passo que seja, prestes a ser apanhados pela coisa que nos persegue, acordando cobertos de suores frios; e aquela coisa, aquela matilha de cães e de S. S., a correr atrás das crianças judias, dentro de pouco devoravam as mais débeis, as que ainda não tinham oito anos, talvez, as que não tardaram a não ter sequer força para se mexerem, derrubadas, espezinhadas, zurzidas, caídas no chão, estendidas ao longo da avenida, demarcando com os seus corpitos magros, desmembrados, o rasto daquela caçada às lebres, daquela matilha que lhes ia no encalço. E não tardou que restassem apenas duas, uma grande e uma pequena, perdidos os barretes na fuga desvairada, os olhos a brilharem como centelhas de neve no rosto pardacento. A mais pequena começava a perder terreno, os S. S. gritavam atrás delas, e os cães puseram-se a uivar, o cheiro a sangue transtornava-os. E então a maior retardou o passo para dar a mão à mais pequena, que já principiava a tropeçar, e ainda correram alguns metros, juntas, a mão direita da mais velha na mão esquerda da mais nova, sempre a direito, até ao momento em que os golpes de matraca as abateram, juntas, de cara no chão, as mãos apertadas para sempre. Os S. S. reuniram os cães, que ladravam, e tornaram a subir a grande avenida, disparando à queima-roupa, na cabeça de cada uma das crianças caídas na grande avenida, sob o olhar vazio das águias hitlerianas, uma bala derradeira.”

                                                 Jorge Semprun, A Longa Viagem
                                     


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