Texto publicado no nº 9 da revista «Nova Síntese», de 2014
DOIS POETAS DE NAVEGAÇÕES E FUTURO
- JOAQUIM
NAMORADO E FERNANDO PESSOA
A descoberta da pegada pessoana em Incomodidade, de Joaquim Namorado (obra
em que este trabalho se deterá) impõe, mesmo que de forma ligeira e forçosamente
a tracejado, um esboço dos contornos dos diferentes universos poéticos surgidos
durante as décadas de 20, 30 e 40, sem o que, o eco das intertextualidades e
dos cruzamentos estéticos e estilísticos conduziria a um fechamento da
perspetiva com que se pretende encarar as modalidades presenciais do heterónimo
pessoano, Álvaro de Campos, naquela obra de Joaquim Namorado. De facto, sendo a
polifonia pessoana, também ela própria cruzada por fisionomias diversas, quer
externas, quer internas à própria fragmentação da dramatis persona que Fernando Pessoa materializou nos seus
heterónimos, perder-se-ia o efeito prismático da sua voz em Joaquim Namorado.
Não se trata apenas de referir a presença especular do primeiro no segundo,
antes de refletir a visão periférica que Namorado agiliza e transforma,
fundamentalmente na forma como se apropria dos topoi caros a Álvaro de Campos, sem, porém, iludir a cadência
rítmica e a busca de novas representações desses mesmos topoi
Quando Joaquim Namorado publicou Incomodidade, em 1945, reuniu nesse
livro poemas escritos desde 1936, de entre os quais escolheu um conjunto
intitulado «Aviso à Navegação» que integrou na coletânea Novo Cancioneiro, publicada em 1941. O panorama poético português,
nesse período de oito anos, abraçava, por um lado, o eco fraturante do 1º
modernismo, relativamente ao cânone literário dominante, de contornos
subjetivistas e contemplativo-saudosistas, das primeiras três décadas do século
XX e, por outro, procurava rasgar novos horizontes poéticos e estéticos, particularmente
em torno dos movimentos Orpheu e Presença.
Despontava
também uma geração que, não indiferente à matriz estética do 1º modernismo, nem
aos valores ontológicos e à incomodidade perante uma rotina cerceadora da
criação artística, do 2º modernismo, sentia a necessidade de se apropriar de
uma estética libertadora que denunciasse a realidade injusta e redutora das
aspirações da humanidade mais duramente castigada pelas condições de vida
degradantes e mesquinhas que lhe eram impostas.
Colocava-se a esta geração o imperativo de conceber uma linguagem
suscetível de se reabilitar plasticamente, por forma a produzir um ato poético
profundamente enraizado na realidade, que irá denunciar, dotando-se de novas
representações estéticas e políticas. O movimento republicano e anticlerical,
em torno da Seara Nova, das 1ª e 2ª
fases, constituiu terreno fértil para a abertura de frentes de intervenção da
juventude mais desperta para os problemas do seu tempo. Caldeada em tendências
literárias heteróclitas e subjetivistas, como eram as vozes da Orpheu e da Presença, a nova polifonia emergente do movimento que há de
chamar-se neorrealismo, irmanar-se-á numa galáxia profundamente marcada pela
assunção da criação artística como ato militante de intervenção política.
Revistas como O Diabo (1934-1940), Sol
Nascente (1937-1940), Manifesto
(1936-1938), Altitude (1939),
servirão de cadinho para o sedimento reflexivo e a ancoragem da nova expressão
literária no contexto histórico e
cultural da época.
O «Ultimatum» de Álvaro de Campos,
publicado no Portugal Futurista, em
1917, vem abalar o remanso simbolista e decadentista que embalava o tom poético
dominante nas duas primeiras décadas do século XX. As dissonâncias temático-estilísticas
introduzidas marcaram um corte visceral com a produção portuguesa dominante na
segunda metade do século XIX. Os movimentos modernistas europeus que eclodiram
nas duas primeiras décadas do século em torno de Marinetti e dos surrealistas
viajaram até nós pela mão de Mário de Sá- Carneiro, Santa-Rita e de
Almada-Negreiros e aqui foram acolhidos por um reduzido número de artistas,
entre os quais se destacava Fernando Pessoa.
De Marinetti, absorveram a radical
visão do mundo e da arte, o repúdio pelo lamento, o gosto pela evasão e pelo
excesso, a glorificação da guerra e da máquina, a reinvenção do poético através
da revolta da palavra e do espaço que tradicionalmente lhe estava reservado na
página. Neste domínio, a estética surrealista ‘desbussolou’ os pontos cardiais
da criação artística e do cânone literário, desde a conceção à sua expressão
material e concreta.
Há de ser este caldo
estilístico-pragmático que confrontará, nos finais dos anos vinte do século
passado, a doxa e a fará tremer de
azedume e repúdio. A revista Orpheu
foi anatematizada, de tal modo, que mal viu a luz do dia.. Este movimento
estrangeirado produziu literatura abundante, quase toda ela fraturante e
cáustica relativamente ao paradigma dominante e a outra poesia de forte impulso
lírico e confessional. Fernando Pessoa destaca-se, não só pela criação poética,
como pela reflexão sobre a arte em geral, mas, fundamentalmente, pela
desmultiplicação da sua personalidade criadora
de outras personalidades, cuja autonomia assumida originou a polifonia
de vozes corporalizadas no amplo palco, onde o poeta “re-presentava” a torrente
da sua criação dramática.
Fernando Pessoa, «o oráculo do
modernismo», como lhe chamaram Archer de Carvalho e Fernando Catroga (1996),
propugnava pela transnacionalidade da cultura portuguesa, como modo de afirmar
a sua especificidade no confronto com outras realidades, como ele próprio
experimentou, bebendo influências estrangeiras e trabalhando-as no contexto
específico que era o seu país. Ciente de que a criação artística não poderia
dissociar-se do seu universo endógeno, foi o seu país, a sua história e o seu
destino a merecerem-lhe uma atenção muito especial. Daí que, não foram apenas
influências estéticas, as que contaminaram muitos poetas seus contemporâneos;
os tópicos preferidos de Pessoa, bem como a visão da arte, haverão de ecoar,
por mimetismo ou em contracorrente de abordagem, na geração de poetas seus contemporâneos. Com distanciamento poético-ideológico, outras correntes
opinativas e fecundantes foram surgindo, sobretudo em torno da Revista Presença, fundada em Coimbra, em 1927, e
onde irá beber as primeiras ‘águas poéticas’ o jovem Joaquim Namorado, que
passará a residir nesta cidade, a partir de 1929. Esta revista, de percurso
algo tumultuoso, e de cariz introspetivo, reuniu à sua volta, quer alguns dos
nomes impulsionadores do modernismo órfico, quer de outros que hão de, mais
tarde, protagonizar a corrente do neorrealismo, já nos anos 30.
O espírito inconformista desses
tempos acolhe eco na poesia de Joaquim Namorado, desde jovem envolvido em
movimentos culturais e políticos, num tempo cinzento e num espaço confinado a
um cais morto de portos adormecidos. Atento às diversas manifestações de
criação artística e literária vindas do Brasil, da União Soviética e de França,
enceta, ao longo das décadas de 30, 40 e 50, uma sistemática tarefa de
divulgação e análise de correntes literárias, de autores e das obras que lhe
pareciam mais relevantes, quer do ponto de vista estético, quer
político-ideológico. Em 1938, na revista O
Diabo, publica um texto intitulado “Do neorrealismo. Amado Fontes”,
percorre autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, ou Lins do Rêgo, pelo
rasgo criativo de inserção da realidade brasileira nos seus romances, em
contraponto com o dessoramento intimista e individualista de um Proust, ou de
um Joyce, sublinhando ainda vultos como Aragon, Gorki ou Garcia Lorca, em Sol Nascente, nº 38 de 1939.
Em 1940, em O Diabo (nº 282), num artigo intitulado “Breve
introdução à leitura dos poetas modernistas portugueses”, Joaquim Namorado,
sublinha a natureza inovadora dos autores do 1º modernismo, consubstanciada na
perturbação provocada na «luta intransigente contra o espírito conformista do
tempo.»; destaca o pendor belicista de grande parte da temática tratada pelos
seus mais eminentes cultores, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Também
não passam em claro as fragilidades que lhes nota: o ensimesmamento persistente
e o sentimento agónico com que encaram a realidade que os rodeia, à qual viram
costas, ou transformam em objeto de ironia, e a fuga à vulgaridade, através do
excesso confessional e da busca do exótico e da excentricidade. Mas também
enaltece a criação poética de outros poetas portugueses – António Nobre,
Teixeira de Pascoais, Cesário Verde – os quais, de pendor intimista e
confessional, revelaram enorme sensibilidade e uma frescura de linguagem e
rítmica.
Como se procura evidenciar,
Pessoa-Álvaro de Campos é de algum modo desconstruído em Incomodidade, pela translação do espaço poético em tempo épico,
mesmo que impossível, como salientou Eduardo Lourenço (1968). A vertigem da
fuga para um espaço anterior e interior, notória na poesia de Álvaro de Campos,
cede o passo, em Joaquim Namorado a uma obstinação pelo enraizamento num tempo
histórico e social, onde procura ancorar a sua escrita, num processo alquímico
de reinvenção do “cais de pedra”, da viagem, do rigor geométrico e matemático, da
maquinaria, da “Hora” e do “volante”, do ser-poeta-em-si.
Adquirido que está o princípio do
palimpsesto, a presença de um autor noutro autor releva, fundamentalmente, da
afinidade temática, estilístico-pragmática ou ideológica, das correntes
subterrâneas que entretecem o mesmo universo vivencial, de uma determinada
cultura, ou visão do mundo. A relação dialógica que então se estabelece entre
dois autores ancorados no mesmo contexto histórico e espácio-temporal
reveste-se de enorme complexidade, a menos que se esteja perante um ato
mimético ou especular, sem elementos propulsores de surpresa e emoção por parte
do leitor virtual.
A presença de Álvaro de Campos em Incomodidade de Joaquim Namorado٭
encontra-se, de forma expressa, através do peritexto, constituído por três
epígrafes que abrem, respetivamente, o grupo de poemas sob o título «Navegação
à Vela» o poema «Cais», e o poema «Lua», este, inserto no conjunto intitulado «Alotropias»:
Pertenço
a um género de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem
trabalho. («Opiário»)
«…o cais é uma saudade de
pedra.» («Ode Marítima»)
«O Binómio de Newton é tão belo como
a Vénus de Milo.» («Lua»)
As citações procuram,
simultaneamente, anunciar ao leitor um horizonte de expectativa de leitura e condensar
o conjunto do discurso que se anuncia; no primeiro caso, a declaração de
pertença ao grupo dos deserdados de um império que se desmoronou, de uma viagem
esperançosa a um eldorado (“…depois de …descoberta”), em tudo diferente do
tempo presente (“Pertenço”); o valor simbólico do cais, sempre ponto de partida
ou de chegada, petrificado numa memória intransitiva, numa espera por um
qualquer “D. Sebastião,/Quer venha ou não!” («Liberdade», de Fernando Pessoa),
em paralelismo com o poema de Namorado, «Sebastianismo»: “Quem tem faltado até
aqui é o D. Sebastião.” Finalmente, a terceira citação, como se verá mais
adiante, alerta a expressa inclinação de ambos os poetas pelas ciências exatas
e pela ironia.
Os seis poemas reunidos, «Navegação à Vela», «Vida»,
«A Ilha dos Navios Perdidos», «Noite Calma nos Portos», «Cais», «Aviso à
Navegação» e «Manifesto à Tripulação» (todos pertencentes ao mesmo segmento) podem
ser lidos como partes de uma mesma narrativa, cujo nervo se sustenta e se
transfigura na memória da linguagem líquida do apogeu marítimo português e no
contexto existencial de um tempo profundamente marcado pela desesperança e pelo
tédio pessoanos, por um lado, e pela urgência de um tempo novo no poeta
neorrealista, por outro. Sem a fragmentação estrófica, e apagados os títulos
dos poemas, vislumbrar-se-á, não uma ode, pelo menos no sentido primeiro do
termo, mas um hino em devir, numa metamorfose dolorosa mas também futurante.
O poema «Navegação à Vela» dialoga
com o sujeito do poema «Opiário», numa linguagem incisiva e imperativa,
desafiante mesmo, numa espiral de afastamentos, sem contudo quebrar as
“amarras” que a ambos tolhem:
Vai
pelo
caminho seguro
na
certeza de aportar.
Vai
nos
vapores das companhias
com
baleeiras nos decks
e S.
O. S. nas telegrafias
e
cintos de salvação.
…
deixa
que eu continue sendo
o
último tripulante
da
fragata naufragada
neste
mar de tubarões. («Navegação
à Vela»)
Eu,
que fui sempre um mau estudante, agora
Não
faço mais que ver o navio ir
Pelo
canal de Suez a conduzir
A
minha vida, cânfora na aurora.
Não
chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta
à direita, nem eu sei para onde.
Passo
os dias no smoking-room com o conde –
Um
escroc francês, conde de fim de
enterro. («Opiário»)
Para um, a opção irredutível de não
perder a rota, mesmo que procelosa; para o outro, a volúpia agónica da
desmaterialização do ser que não se encontra senão na subjetivação expansiva da
linguagem que se esfuma em espirais do Nada. Para ambos, a busca incessante do
ser-poeta, para deixar de pertencer “a um género de portugueses que…ficaram sem
trabalho”; em ambos
ainda, a memória magoada de uma fragata, ou de um navio à vela ancorado num «Cais»
petrificado.
O poema «A Ilha dos Navios Perdidos»,
de Namorado, perfila-se, seco e rude, como a outra face de Jano, relativamente
ao tom geral de otimismo que se respira na «Ode Marítima», em consonância com a
«Mensagem» glorificadora das descobertas e dos seus protagonistas:
Aqui é a ilha dos
navios perdidos,
dos navios abalroados,
afundados
nos naufrágios…
...
Não há grandeza que
baste
quando a desgraça é
tamanha… («Ilha dos Navios
Perdidos»)
Os
deíticos que semeiam o poema (“aqui”; “esta”; “desta”; “onde”) remetem para uma
ancoragem no presente, no tempo que é preciso povoar, sem fantasmas, nem
saudade, sem fuga envolta em quimeras metafísicas e em vertigem do além-mar
anterior e interior.
A liquefação morfológica, ao volante
do imaginário:
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida anterior de renda e laca.
…
Não tenho personalidade alguma.
…
Não posso estar em parte alguma. («Opíário»)
procura,
em «A Ilha dos Navios Perdidos», através do verso curto, balanceado pela
pontuação notoriamente significante, ser contrariada pela descida ao agora, à
sua realidade. O lirismo subjacente à estrutura estrófica de «Opiário» encontra
como resposta a tentativa de afastamento induzida pela natureza concreta da
linguagem.
E
dessa realidade, “desses caminhos desertos” («Zero»), parte «O Aviso à
Navegação»:
Alto lá!
Aviso à navegação!
...
Estou aqui
na ilha sem nome,
…
E não espereis de mim a paz…
A linguagem feita ato performativo,
a voz que constrói o real poético, e que extravasa a “ilha perdida” (o país
perdido?), a ausência de denominação, como se ainda não nascida, mas presente
pelo poder do signo, e pelo horizonte aberto pelas reticências, e,
simbolicamente, pela negativa que antecede “a paz”, parecem querer encontrar eco, por efeito
oposto, nestes versos de Pessoa/Campos:
Símbolos? Estou farto de
símbolos…
Mas dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.
Quais símbolos? Sonhos. –
(«Símbolos? Estou farto de símbolos…»)
(«Símbolos? Estou farto de símbolos…»)
Símbolos,
aqui, são apenas pretexto para, de algum modo, contradizer (ação tão frequente
na poesia pessoana), o pendor especulativo e intelectual, o exercício abstrato
de delir o quotidiano na rotina vivencial.
Poder-se-ão
encontrar, porventura, no ritmo eufórico da «Ode Triunfal», mergulhos íntimos
no presente, mergulhos que buscam, em profundidade, algo que irmane o poeta com
um presente virtuoso, sempre que a febre da mudança urgente palpita ao ritmo do
burburinho civilizacional; sente-se, na vertigem do discurso frenético que a
pontuação mal sustém, não fora a disforia da “dolorosa luz”, “dos lábios secos”,
“da febre” que, de algum modo, contraria o sensacionismo transbordante,
incontrolável, de que Joaquim Namorado se afasta, mais contido na sua própria
construção, quando diz e se diz, no verso curto, exclamativo e suspenso, de
«Três Poemas de Heroísmo». Enquanto Álvaro de Campos se consome no “poder
exprimir-[se] todo como um motor se exprime!”, Namorado opta pelo grito flamejante,
qual bandeira conclamando à ação.
Mas é, também, na «Ode Triunfal» e
na «Saudação a Walt Whitman», (no caso vertente, trata-se da exaltação do
homem) que se encontra matéria poético-estilística desenvolvida, mas por
contraponto, em «Poema da Manhã Clara», «Fábrica» e «Condutores de Máquinas»,
reunidos num subtítulo, também ele muito eloquente: «Arquictetura». A recusa
liminar do passado e dos seus fantasmas, a propugnação por um salto
civilizacional e cultural que cortasse o cordão umbilical com o presente, caros
aos cultores do Futurismo – a saudação ao progresso, aos desenvolvimentos
técnico e tecnológico, a sede de novas experiências estéticas e discursivas–,
atraem Joaquim Namorado, sem, contudo, o deslumbrar.
Inventa, nessa visão do mundo, instrumentos
inspiradores – as potencialidades do progresso, da industrialização, do acesso
ao conhecimento - desde que enquadrados por um movimento político-social
radicalmente transformador da condição de exploração do homem pelo homem,
consubstanciada na imagem mítica das mudanças ocorridas na recém-criada União
Soviética, laboratório virtuoso de uma sociedade justa e progressista,
inspirada pelo marxismo-leninismo, que chegaria a grande setores da humanidade,
libertando-a do trabalho alienante e hostil.
A cultura, em geral, e a literatura,
em particular, deveria, pois, empenhar-se, militantemente, no esforço de génese
de um homem novo, sem que, no entanto, se resumisse a uma função meramente
propagandística, alienando a individualidade da criação artística. Em Incomodidade, nalguns dos poemas
referidos anteriormente, o poeta assume claramente essa missão de arauto de uma
nova realidade, metamorfoseando o canto pessoano, porque o contamina com o seu
próprio ato criador, genuíno e outro:
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se
exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como
um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me
fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me
completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e
calores e carvões
Desta flora estupenda, negra,
artificial e insaciável! («Ode
Triunfal»)
Contacto:
Os tempos do motor
transpiram a sua segurança de
máquinas
_solda-se o braço no volante
preso
e bate o coração no mesmo passo.
Olho estes homens condutores de
máquinas
na simples ganga azul
do seu trabalho,
e é uma raça nova que aos meus
olhos nasce
_nervos e eixos, êmbolos e veias
são o mesmo aço. («Condutores de Máquinas»)
Denotar-se-á, no primeiro excerto, a
ambiguidade (intencional) e o distanciamento objetivo face a uma adesão
emocional aos elementos do progresso; é com sarcasmo e dor que o heterónimo de
Fernando Pessoa semeia o discurso triunfalmente apologético das fábricas, dos
motores, dos odores, das sensações aparentemente entusiásticas, do homem. A
fuga para uma certa histeria de natureza erótica, excessiva, absurda denegam os
propósitos enunciados. Em Joaquim Namorado, o mesmo léxico ergue a
representação do homem, do progresso e do trabalho a uma dimensão otimista,
coordenada e redentora. Os sentidos segundos anunciam uma outra humanidade que
se liberta pela têmpera proletária metaforizada na “ganga azul”.
À visão épica da harmonia entre
homem e máquina, também representada nos poemas «Fábrica» e «Altitude», descreve
o poeta, em «O Andaime», a narrativa do operário vendendo barato a vida, destino
cruel e iníquo, que «Ode Triunfal» glosa com ironia mordaz:
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos
progressos!
Progressos dos armamentos
gloriosamente mortíferos!
…
Amo-vos a todos, a tudo, como
uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a
minha vista
Em vós…
A
desmesura adverbial do poeta, fratura inevitavelmente o tom empolgado, num
fingimento construído e desconstruído ao longo da ode, pontuada por indícios do
o pathos que reverbera à superfície
do discurso, apenas diluído pelo lirismo revigorante da memória do lar e da
família, onde também o poeta neorrealista se refugia, quando a dor queima.
(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à
roda,
E o mistério do mundo é do
tamanho disto.
…) («Ode
Triunfal»)
Mãe!...
Acaricia, assim, os meus
cabelos,
Leve, carinhosamente:… («Calmaria»)
O
poema «Aventuras nos Mares do Sul», inserido no segmento intitulado Alotropias, é constituído apenas por uma
estrofe: “Eu não fui lá…”
A
secura da mensagem e a carga simbólica da negação parecem querer responder com ironia
e distanciamento à
desterritorialização da viagem líquida e, por isso mesmo, plena de plasticidade
íntima, de «Ode Marítima». Coabitação de “sensações incompatíveis e análogas»,
a inquietação da eloquência criadora, a necessidade de fugir para o “paquete”
que se avista ao largo, local de onde dispara o “volante” do imaginário”, a
“Manhã e a “Hora” da inspiração e da introspeção, conduzem o poeta para um
estádio de quase êxtase que tem por fundo a memória gravada do Mar, território
perdido da história pátria. Por isso, “todo o cais é uma saudade de pedra” ,para
quem parte ficando nesse mesmo Cais, simultaneamente evanescente e petrificado,
no futuro do pretérito.
A urgência da ação militante da
poesia de Joaquim Namorado, arquitetada em torno do mesmo campo semântico que povoa
a «Ode Marítima», indica uma outra leitura possível: a metáfora da navegação
anuncia e enuncia o desígnio que lhe cabe, a ele e aos seus “companheiros desta
aventura da vida!”: o da luta por uma outra sociedade, onde não haja, nem
“marinheiros em terra”, nem “operários de braços quebrados,/inúteis.” («Noite
Calma nos Portos»).
Ao horizonte embaciado e vago da
fuga redentora e à premência da instância enunciadora em sentir em profundidade
rotas e viagens,
Ah seja como for, seja por onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas,
pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a
Distância Abstracta,
Indefinidamente, pelas noites
misteriosas e fundas,
Levado, como a poeira, plos ventos,
plos vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez! («Ode Marítima»)
ao,
“Longe”, ao “Fora”, à “Distância Abstracta”, o poeta da Incomodidade, sacode-lhes a
ganga metafísica e desce à vida, fazendo das fraquezas forças:
- Tantas vezes me chorei perdido
e vencido me arrastei
ao sabor das tempestades e dos
fados…
Tantas vezes fui o herói da
aventura,
o navio naufragado…
e sempre ressuscitei
no cais . («Cais»)
O derradeiro tópico apreciado neste
texto, aproxima, sem ambiguidades, Joaquim Namorado de Álvaro de Campos: a
formação científica de ambos; o engenheiro que comete a heresia estética de achar o
“Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.” que encabeça o poema
«Lua», seta dirigida aos poetas ultra- românticos, satirizados pelo 1º
modernismo e, que, na época em que os dois autores viveram, ainda pululavam no
espaço intelectual marca presença no contexto poética de Joaquim Namorado: o
rigor, o geometrismo, a exata medida na criação poética e nos juízos formulados.
Num texto manuscrito inserido no Catálogo da Exposição comemorativa do
centenário do nascimento de Joaquim Namorado, organizada pelo Museu do
Neorrealismo e pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, em 2015, o poeta
afirma: “A matemática e a literatura são duas formas de entender o mundo e a
vida. Hoje o estudo da linguística utiliza como instrumento de eleição a lógica
matemática, a matemática tem-se servido dos avanços da linguística para
resolver alguns problemas (…) da teoria dos números”.
Por outro lado, é notório em Álvaro
de Campos o detalhe do ritmo, o zelo da pausa, a simetria do espaço e do metro.
Em Joaquim Namorado, sobressai amiúde a estética do poema na página, o seu pendor
geométrico para a estrofe longa, afilada e curta, como uma lâmina procurando
tocar o coração dos seus leitores.
Os sobressaltos, as angústias, a
euforia do ato criador; as ‘navegações’ de
Fernando Pessoa e Joaquim Namorado, por rotas cruzadas pelo imaginário, pelo
subjetivismo, e pelo poder do signo; as memórias, enquanto refúgio ou
propulsoras de novos rumos, anunciam, em cada palavra escrita, em cada imagem
construída, idêntica ou diversa, o poder simbólico da herança literária e
humana que ambos legaram ao futuro.
.
.
٭ Os poemas
referidos no texto foram extraídos, respetivamente, da edição da Ática,
Limitada, Lisboa, 1958, e da edição da
Atlântida – Livraria Editora, Lda, Coimbra, 1945.
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