sábado, 10 de dezembro de 2016




Texto publicado no nº 9 da revista «Nova Síntese», de 2014


DOIS POETAS DE NAVEGAÇÕES E FUTURO
- JOAQUIM NAMORADO E FERNANDO PESSOA

                        A descoberta da pegada pessoana em Incomodidade, de Joaquim Namorado (obra em que este trabalho se deterá) impõe, mesmo que de forma ligeira e forçosamente a tracejado, um esboço dos contornos dos diferentes universos poéticos surgidos durante as décadas de 20, 30 e 40, sem o que, o eco das intertextualidades e dos cruzamentos estéticos e estilísticos conduziria a um fechamento da perspetiva com que se pretende encarar as modalidades presenciais do heterónimo pessoano, Álvaro de Campos, naquela obra de Joaquim Namorado. De facto, sendo a polifonia pessoana, também ela própria cruzada por fisionomias diversas, quer externas, quer internas à própria fragmentação da dramatis persona que Fernando Pessoa materializou nos seus heterónimos, perder-se-ia o efeito prismático da sua voz em Joaquim Namorado. Não se trata apenas de referir a presença especular do primeiro no segundo, antes de refletir a visão periférica que Namorado agiliza e transforma, fundamentalmente na forma como se apropria dos topoi caros a Álvaro de Campos, sem, porém, iludir a cadência rítmica e a busca de novas representações desses mesmos topoi
            Quando Joaquim Namorado publicou Incomodidade, em 1945, reuniu nesse livro poemas escritos desde 1936, de entre os quais escolheu um conjunto intitulado «Aviso à Navegação» que integrou na coletânea Novo Cancioneiro, publicada em 1941. O panorama poético português, nesse período de oito anos, abraçava, por um lado, o eco fraturante do 1º modernismo, relativamente ao cânone literário dominante, de contornos subjetivistas e contemplativo-saudosistas, das primeiras três décadas do século XX e, por outro, procurava rasgar novos horizontes poéticos e estéticos, particularmente em torno dos movimentos Orpheu e Presença.
            Despontava também uma geração que, não indiferente à matriz estética do 1º modernismo, nem aos valores ontológicos e à incomodidade perante uma rotina cerceadora da criação artística, do 2º modernismo, sentia a necessidade de se apropriar de uma estética libertadora que denunciasse a realidade injusta e redutora das aspirações da humanidade mais duramente castigada pelas condições de vida degradantes e mesquinhas que lhe eram impostas.
            Colocava-se a esta geração  o imperativo de conceber uma linguagem suscetível de se reabilitar plasticamente, por forma a produzir um ato poético profundamente enraizado na realidade, que irá denunciar, dotando-se de novas representações estéticas e políticas. O movimento republicano e anticlerical, em torno da Seara Nova, das 1ª e 2ª fases, constituiu terreno fértil para a abertura de frentes de intervenção da juventude mais desperta para os problemas do seu tempo. Caldeada em tendências literárias heteróclitas e subjetivistas, como eram as vozes da Orpheu e da Presença, a nova polifonia emergente do movimento que há de chamar-se neorrealismo, irmanar-se-á numa galáxia profundamente marcada pela assunção da criação artística como ato militante de intervenção política. Revistas como O Diabo (1934-1940),  Sol Nascente (1937-1940), Manifesto (1936-1938), Altitude (1939), servirão de cadinho para o sedimento reflexivo e a ancoragem da nova expressão literária no contexto histórico e  cultural da época.
           
            O «Ultimatum» de Álvaro de Campos, publicado no Portugal Futurista, em 1917, vem abalar o remanso simbolista e decadentista que embalava o tom poético dominante nas duas primeiras décadas do século XX. As dissonâncias temático-estilísticas introduzidas marcaram um corte visceral com a produção portuguesa dominante na segunda metade do século XIX. Os movimentos modernistas europeus que eclodiram nas duas primeiras décadas do século em torno de Marinetti e dos surrealistas viajaram até nós pela mão de Mário de Sá- Carneiro, Santa-Rita e de Almada-Negreiros e aqui foram acolhidos por um reduzido número de artistas, entre os quais se destacava Fernando Pessoa.
            De Marinetti, absorveram a radical visão do mundo e da arte, o repúdio pelo lamento, o gosto pela evasão e pelo excesso, a glorificação da guerra e da máquina, a reinvenção do poético através da revolta da palavra e do espaço que tradicionalmente lhe estava reservado na página. Neste domínio, a estética surrealista ‘desbussolou’ os pontos cardiais da criação artística e do cânone literário, desde a conceção à sua expressão material e concreta.
            Há de ser este caldo estilístico-pragmático que confrontará, nos finais dos anos vinte do século passado, a doxa e a fará tremer de azedume e repúdio. A revista Orpheu foi anatematizada, de tal modo, que mal viu a luz do dia.. Este movimento estrangeirado produziu literatura abundante, quase toda ela fraturante e cáustica relativamente ao paradigma dominante e a outra poesia de forte impulso lírico e confessional. Fernando Pessoa destaca-se, não só pela criação poética, como pela reflexão sobre a arte em geral, mas, fundamentalmente, pela desmultiplicação da sua personalidade criadora  de outras personalidades, cuja autonomia assumida originou a polifonia de vozes corporalizadas no amplo palco, onde o poeta “re-presentava” a torrente da sua criação dramática.
            Fernando Pessoa, «o oráculo do modernismo», como lhe chamaram Archer de Carvalho e Fernando Catroga (1996), propugnava pela transnacionalidade da cultura portuguesa, como modo de afirmar a sua especificidade no confronto com outras realidades, como ele próprio experimentou, bebendo influências estrangeiras e trabalhando-as no contexto específico que era o seu país. Ciente de que a criação artística não poderia dissociar-se do seu universo endógeno, foi o seu país, a sua história e o seu destino a merecerem-lhe uma atenção muito especial. Daí que, não foram apenas influências estéticas, as que contaminaram muitos poetas seus contemporâneos; os tópicos preferidos de Pessoa, bem como a visão da arte, haverão de ecoar, por mimetismo ou em contracorrente de abordagem, na geração de poetas  seus contemporâneos.      Com distanciamento poético-ideológico, outras correntes opinativas e fecundantes foram surgindo, sobretudo em torno da Revista Presença, fundada em Coimbra, em 1927, e onde irá beber as primeiras ‘águas poéticas’ o jovem Joaquim Namorado, que passará a residir nesta cidade, a partir de 1929. Esta revista, de percurso algo tumultuoso, e de cariz introspetivo, reuniu à sua volta, quer alguns dos nomes impulsionadores do modernismo órfico, quer de outros que hão de, mais tarde, protagonizar a corrente do neorrealismo, já nos anos 30.
            O espírito inconformista desses tempos acolhe eco na poesia de Joaquim Namorado, desde jovem envolvido em movimentos culturais e políticos, num tempo cinzento e num espaço confinado a um cais morto de portos adormecidos. Atento às diversas manifestações de criação artística e literária vindas do Brasil, da União Soviética e de França, enceta, ao longo das décadas de 30, 40 e 50, uma sistemática tarefa de divulgação e análise de correntes literárias, de autores e das obras que lhe pareciam mais relevantes, quer do ponto de vista estético, quer político-ideológico. Em 1938, na revista O Diabo, publica um texto intitulado “Do neorrealismo. Amado Fontes”, percorre autores como Jorge Amado, Graciliano Ramos, ou Lins do Rêgo, pelo rasgo criativo de inserção da realidade brasileira nos seus romances, em contraponto com o dessoramento intimista e individualista de um Proust, ou de um Joyce, sublinhando ainda vultos como Aragon, Gorki ou Garcia Lorca, em Sol Nascente, nº 38 de 1939.
            Em 1940, em O Diabo (nº 282), num artigo intitulado “Breve introdução à leitura dos poetas modernistas portugueses”, Joaquim Namorado, sublinha a natureza inovadora dos autores do 1º modernismo, consubstanciada na perturbação provocada na «luta intransigente contra o espírito conformista do tempo.»; destaca o pendor belicista de grande parte da temática tratada pelos seus mais eminentes cultores, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Também não passam em claro as fragilidades que lhes nota: o ensimesmamento persistente e o sentimento agónico com que encaram a realidade que os rodeia, à qual viram costas, ou transformam em objeto de ironia, e a fuga à vulgaridade, através do excesso confessional e da busca do exótico e da excentricidade. Mas também enaltece a criação poética de outros poetas portugueses – António Nobre, Teixeira de Pascoais, Cesário Verde – os quais, de pendor intimista e confessional, revelaram enorme sensibilidade e uma frescura de linguagem e rítmica.
            Como se procura evidenciar, Pessoa-Álvaro de Campos é de algum modo desconstruído em Incomodidade, pela translação do espaço poético em tempo épico, mesmo que impossível, como salientou Eduardo Lourenço (1968). A vertigem da fuga para um espaço anterior e interior, notória na poesia de Álvaro de Campos, cede o passo, em Joaquim Namorado a uma obstinação pelo enraizamento num tempo histórico e social, onde procura ancorar a sua escrita, num processo alquímico de reinvenção do “cais de pedra”, da viagem, do rigor geométrico e matemático, da maquinaria, da “Hora” e do “volante”, do ser-poeta-em-si.
            Adquirido que está o princípio do palimpsesto, a presença de um autor noutro autor releva, fundamentalmente, da afinidade temática, estilístico-pragmática ou ideológica, das correntes subterrâneas que entretecem o mesmo universo vivencial, de uma determinada cultura, ou visão do mundo. A relação dialógica que então se estabelece entre dois autores ancorados no mesmo contexto histórico e espácio-temporal reveste-se de enorme complexidade, a menos que se esteja perante um ato mimético ou especular, sem elementos propulsores de surpresa e emoção por parte do leitor virtual.
            A presença de Álvaro de Campos em Incomodidade de Joaquim Namorado٭ encontra-se, de forma expressa, através do peritexto, constituído por três epígrafes que abrem, respetivamente, o grupo de poemas sob o título «Navegação à Vela» o poema «Cais», e o poema «Lua», este, inserto no conjunto intitulado «Alotropias»:
Pertenço a um género de portugueses que depois de estar a Índia descoberta ficaram sem trabalho.   («Opiário»)
            «…o cais é uma saudade de pedra.»    («Ode Marítima»)
            «O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.»       («Lua»)
            As citações procuram, simultaneamente, anunciar ao leitor um horizonte de expectativa de leitura e condensar o conjunto do discurso que se anuncia; no primeiro caso, a declaração de pertença ao grupo dos deserdados de um império que se desmoronou, de uma viagem esperançosa a um eldorado (“…depois de …descoberta”), em tudo diferente do tempo presente (“Pertenço”); o valor simbólico do cais, sempre ponto de partida ou de chegada, petrificado numa memória intransitiva, numa espera por um qualquer “D. Sebastião,/Quer venha ou não!” («Liberdade», de Fernando Pessoa), em paralelismo com o poema de Namorado, «Sebastianismo»: “Quem tem faltado até aqui é o D. Sebastião.” Finalmente, a terceira citação, como se verá mais adiante, alerta a expressa inclinação de ambos os poetas pelas ciências exatas e pela ironia.
             Os seis poemas reunidos, «Navegação à Vela», «Vida», «A Ilha dos Navios Perdidos», «Noite Calma nos Portos», «Cais», «Aviso à Navegação» e «Manifesto à Tripulação» (todos pertencentes ao mesmo segmento) podem ser lidos como partes de uma mesma narrativa, cujo nervo se sustenta e se transfigura na memória da linguagem líquida do apogeu marítimo português e no contexto existencial de um tempo profundamente marcado pela desesperança e pelo tédio pessoanos, por um lado, e pela urgência de um tempo novo no poeta neorrealista, por outro. Sem a fragmentação estrófica, e apagados os títulos dos poemas, vislumbrar-se-á, não uma ode, pelo menos no sentido primeiro do termo, mas um hino em devir, numa metamorfose dolorosa mas também futurante.
            O poema «Navegação à Vela» dialoga com o sujeito do poema «Opiário», numa linguagem incisiva e imperativa, desafiante mesmo, numa espiral de afastamentos, sem contudo quebrar as “amarras” que a ambos tolhem:

Vai
pelo caminho seguro
na certeza de aportar.
Vai
nos vapores das companhias    
com baleeiras nos decks           
e S. O. S. nas telegrafias
e cintos de salvação.
deixa
 que eu continue sendo  
o último tripulante                      
da fragata naufragada
neste mar de tubarões.               («Navegação à Vela»)


Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir         
A minha vida, cânfora na aurora.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde –
Um escroc francês, conde de fim de enterro.                                («Opiário»)

            Para um, a opção irredutível de não perder a rota, mesmo que procelosa; para o outro, a volúpia agónica da desmaterialização do ser que não se encontra senão na subjetivação expansiva da linguagem que se esfuma em espirais do Nada. Para ambos, a busca incessante do ser-poeta, para deixar de pertencer “a um género de portugueses que…ficaram sem trabalho”; em  ambos ainda, a memória magoada de uma fragata, ou de um navio à vela ancorado num «Cais» petrificado.
            O poema «A Ilha dos Navios Perdidos», de Namorado, perfila-se, seco e rude, como a outra face de Jano, relativamente ao tom geral de otimismo que se respira na «Ode Marítima», em consonância com a «Mensagem» glorificadora das descobertas e dos seus protagonistas:
Aqui é a ilha dos navios perdidos,
dos navios abalroados, afundados
nos naufrágios…
...
Não há grandeza que baste
quando a desgraça é tamanha…           («Ilha dos Navios Perdidos»)

Os deíticos que semeiam o poema (“aqui”; “esta”; “desta”; “onde”) remetem para uma ancoragem no presente, no tempo que é preciso povoar, sem fantasmas, nem saudade, sem fuga envolta em quimeras metafísicas e em vertigem do além-mar anterior e interior.
            A liquefação morfológica, ao volante do imaginário:
            Vou cambaleando através do lavor
            Duma vida anterior de renda e laca.
           
            Não tenho personalidade alguma.
           
            Não posso estar em parte alguma.       («Opíário»)

procura, em «A Ilha dos Navios Perdidos», através do verso curto, balanceado pela pontuação notoriamente significante, ser contrariada pela descida ao agora, à sua realidade. O lirismo subjacente à estrutura estrófica de «Opiário» encontra como resposta a tentativa de afastamento induzida pela natureza concreta da linguagem.
E dessa realidade, “desses caminhos desertos” («Zero»), parte «O Aviso à Navegação»:
            Alto lá!
                Aviso à navegação!
                ...
                Estou aqui
                na ilha sem nome,
               
                E não espereis de mim a paz…

            A linguagem feita ato performativo, a voz que constrói o real poético, e que extravasa a “ilha perdida” (o país perdido?), a ausência de denominação, como se ainda não nascida, mas presente pelo poder do signo, e pelo horizonte aberto pelas reticências, e, simbolicamente, pela negativa que antecede “a paz”,  parecem querer encontrar eco, por efeito oposto,  nestes versos de Pessoa/Campos:
                Símbolos? Estou farto de símbolos…
                Mas dizem-me que tudo é símbolo.
                Todos me dizem nada.
                Quais símbolos? Sonhos. –     
        («Símbolos? Estou farto de símbolos…»)                                                                                                                                                

Símbolos, aqui, são apenas pretexto para, de algum modo, contradizer (ação tão frequente na poesia pessoana), o pendor especulativo e intelectual, o exercício abstrato de delir o quotidiano na rotina vivencial.
            Poder-se-ão encontrar, porventura, no ritmo eufórico da «Ode Triunfal», mergulhos íntimos no presente, mergulhos que buscam, em profundidade, algo que irmane o poeta com um presente virtuoso, sempre que a febre da mudança urgente palpita ao ritmo do burburinho civilizacional; sente-se, na vertigem do discurso frenético que a pontuação mal sustém, não fora a disforia da “dolorosa luz”, “dos lábios secos”, “da febre” que, de algum modo, contraria o sensacionismo transbordante, incontrolável, de que Joaquim Namorado se afasta, mais contido na sua própria construção, quando diz e se diz, no verso curto, exclamativo e suspenso, de «Três Poemas de Heroísmo». Enquanto Álvaro de Campos se consome no “poder exprimir-[se] todo como um motor se exprime!”, Namorado opta pelo grito flamejante, qual bandeira conclamando à ação.
            Mas é, também, na «Ode Triunfal» e na «Saudação a Walt Whitman», (no caso vertente, trata-se da exaltação do homem) que se encontra matéria poético-estilística desenvolvida, mas por contraponto, em «Poema da Manhã Clara», «Fábrica» e «Condutores de Máquinas», reunidos num subtítulo, também ele muito eloquente: «Arquictetura». A recusa liminar do passado e dos seus fantasmas, a propugnação por um salto civilizacional e cultural que cortasse o cordão umbilical com o presente, caros aos cultores do Futurismo – a saudação ao progresso, aos desenvolvimentos técnico e tecnológico, a sede de novas experiências estéticas e discursivas–, atraem Joaquim Namorado, sem, contudo, o deslumbrar.
            Inventa, nessa visão do mundo, instrumentos inspiradores – as potencialidades do progresso, da industrialização, do acesso ao conhecimento - desde que enquadrados por um movimento político-social radicalmente transformador da condição de exploração do homem pelo homem, consubstanciada na imagem mítica das mudanças ocorridas na recém-criada União Soviética, laboratório virtuoso de uma sociedade justa e progressista, inspirada pelo marxismo-leninismo, que chegaria a grande setores da humanidade, libertando-a do trabalho alienante e hostil.
            A cultura, em geral, e a literatura, em particular, deveria, pois, empenhar-se, militantemente, no esforço de génese de um homem novo, sem que, no entanto, se resumisse a uma função meramente propagandística, alienando a individualidade da criação artística. Em Incomodidade, nalguns dos poemas referidos anteriormente, o poeta assume claramente essa missão de arauto de uma nova realidade, metamorfoseando o canto pessoano, porque o contamina com o seu próprio ato criador, genuíno e outro:
            Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
                Ser completo como uma máquina!
                Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
                Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
                Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
                A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
                Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!                 («Ode Triunfal»)
           
            Contacto:
                Os tempos do motor
                transpiram a sua segurança de máquinas
                _solda-se o braço no volante preso
                e bate o coração no mesmo passo.

                Olho estes homens condutores de máquinas
                na simples ganga azul
                do seu trabalho,
                e é uma raça nova que aos meus olhos nasce
                _nervos e eixos, êmbolos e veias
                são o mesmo aço.             («Condutores de Máquinas»)

            Denotar-se-á, no primeiro excerto, a ambiguidade (intencional) e o distanciamento objetivo face a uma adesão emocional aos elementos do progresso; é com sarcasmo e dor que o heterónimo de Fernando Pessoa semeia o discurso triunfalmente apologético das fábricas, dos motores, dos odores, das sensações aparentemente entusiásticas, do homem. A fuga para uma certa histeria de natureza erótica, excessiva, absurda denegam os propósitos enunciados. Em Joaquim Namorado, o mesmo léxico ergue a representação do homem, do progresso e do trabalho a uma dimensão otimista, coordenada e redentora. Os sentidos segundos anunciam uma outra humanidade que se liberta pela têmpera proletária metaforizada na “ganga azul”.
            À visão épica da harmonia entre homem e máquina, também representada nos poemas «Fábrica» e «Altitude», descreve o poeta, em «O Andaime», a narrativa do operário vendendo barato a vida, destino cruel e iníquo, que «Ode Triunfal» glosa com ironia mordaz:
            Eh, cimento armado, beton de cimento, novos progressos!
                Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
               
                Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
                Amo-vos carnivoramente,
                Pervertidamente e enroscando a minha vista
            Em vós…
A desmesura adverbial do poeta, fratura inevitavelmente o tom empolgado, num fingimento construído e desconstruído ao longo da ode, pontuada por indícios do o pathos que reverbera à superfície do discurso, apenas diluído pelo lirismo revigorante da memória do lar e da família, onde também o poeta neorrealista se refugia, quando a dor queima.
            (Na nora do quintal da minha casa
                O burro anda à roda, anda à roda,
                E o mistério do mundo é do tamanho disto.                               
                …)                                                                         («Ode Triunfal»)

                Mãe!...
                Acaricia, assim, os meus cabelos,
                Leve, carinhosamente:…                 («Calmaria»)

O poema «Aventuras nos Mares do Sul», inserido no segmento intitulado Alotropias, é constituído apenas por uma estrofe: “Eu não fui lá…”
A secura da mensagem e a carga simbólica da negação parecem querer responder com ironia e distanciamento        à desterritorialização da viagem líquida e, por isso mesmo, plena de plasticidade íntima, de «Ode Marítima». Coabitação de “sensações incompatíveis e análogas», a inquietação da eloquência criadora, a necessidade de fugir para o “paquete” que se avista ao largo, local de onde dispara o “volante” do imaginário”, a “Manhã e a “Hora” da inspiração e da introspeção, conduzem o poeta para um estádio de quase êxtase que tem por fundo a memória gravada do Mar, território perdido da história pátria. Por isso, “todo o cais é uma saudade de pedra” ,para quem parte ficando nesse mesmo Cais, simultaneamente evanescente e petrificado, no futuro do pretérito.
            A urgência da ação militante da poesia de Joaquim Namorado, arquitetada em torno do mesmo campo semântico que povoa a «Ode Marítima», indica uma outra leitura possível: a metáfora da navegação anuncia e enuncia o desígnio que lhe cabe, a ele e aos seus “companheiros desta aventura da vida!”: o da luta por uma outra sociedade, onde não haja, nem “marinheiros em terra”, nem “operários de braços quebrados,/inúteis.” («Noite Calma nos Portos»).
            Ao horizonte embaciado e vago da fuga redentora e à premência da instância enunciadora em sentir em profundidade rotas e viagens,
            Ah seja como for, seja por onde for, partir!
            Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
            Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta,
            Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
            Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!
             Ir, ir, ir, ir de vez!           («Ode Marítima»)


ao, “Longe”, ao “Fora”, à “Distância Abstracta”, o poeta da Incomodidade, sacode-lhes  a ganga metafísica e desce à vida, fazendo das fraquezas forças:
            - Tantas vezes me chorei perdido
            e vencido me arrastei
            ao sabor das tempestades e dos fados…
            Tantas vezes fui o herói da aventura,
            o navio naufragado…
            e sempre ressuscitei
            no cais .           («Cais»)


            O derradeiro tópico apreciado neste texto, aproxima, sem ambiguidades, Joaquim Namorado de Álvaro de Campos: a formação científica de ambos; o engenheiro  que comete a heresia estética de achar o “Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.” que encabeça o poema «Lua», seta dirigida aos poetas ultra- românticos, satirizados pelo 1º modernismo e, que, na época em que os dois autores viveram, ainda pululavam no espaço intelectual marca presença no contexto poética de Joaquim Namorado: o rigor, o geometrismo, a exata medida na criação poética e nos juízos formulados. Num texto  manuscrito inserido no Catálogo da Exposição comemorativa do centenário do nascimento de Joaquim Namorado, organizada pelo Museu do Neorrealismo e pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, em 2015, o poeta afirma: “A matemática e a literatura são duas formas de entender o mundo e a vida. Hoje o estudo da linguística utiliza como instrumento de eleição a lógica matemática, a matemática tem-se servido dos avanços da linguística para resolver alguns problemas (…) da teoria dos números”.
            Por outro lado, é notório em Álvaro de Campos o detalhe do ritmo, o zelo da pausa, a simetria do espaço e do metro. Em Joaquim Namorado, sobressai amiúde a estética do poema na página, o seu pendor geométrico para a estrofe longa, afilada e curta, como uma lâmina procurando tocar o coração dos seus leitores.
            Os sobressaltos, as angústias, a euforia do ato criador; as ‘navegações’  de Fernando Pessoa e Joaquim Namorado, por rotas cruzadas pelo imaginário, pelo subjetivismo, e pelo poder do signo; as memórias, enquanto refúgio ou propulsoras de novos rumos, anunciam, em cada palavra escrita, em cada imagem construída, idêntica ou diversa, o poder simbólico da herança literária e humana que ambos legaram ao futuro.
        
                                                                                             
           




           
                                  
                                                          
                                                          
                                                          


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٭ Os poemas referidos no texto foram extraídos, respetivamente, da edição da Ática, Limitada, Lisboa, 1958, e da  edição da Atlântida – Livraria Editora, Lda, Coimbra, 1945.





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