domingo, 2 de julho de 2017

OS SUPER-RICOS ABANDONAM O MUNDO





Por que razão o clima interessa tão pouco aos nossos dirigentes? O filósofo Bruno Latour apresenta uma hipótese radical: as classes dominantes têm consciência da ameaça ecológica, mas calam-se. E preferem construir um futuro fora do mundo comum.

(Extrato da Entrevista conduzida por Éric Aeschimann e  Xavier  De La Porte, para L’OBS nº 2732, 16-22 de março de 2017)


Resultado de imagem para BRUNO LATOURA campanha para a eleição presidencial está ao rubro, e e a questão climática está claramente ausente nos três candidatos mais bem classificados nas sondagens: Marine Le Pen, François Fillon e, menorizada em Emmanuel Macron. O senhor, que há 10 anos reflete, no âmbito das Ciências Políticas (Sciences-Po), a necessidade de transformar o ambiente num verdadeiro desafio político, como explica tão grande silêncio?

 O erro está em falarmos de «clima». O termo evoca algo demasiado  longínquo, com o qual não temos de nos preocupar. Seria necessário dar-lhe uma definição mais próxima, e ligá-lo às noções de território e de solo. Os ecologistas ocupam-se do ambiente como se se tratasse de um objeto exterior à política. Não se sentem nada bem a casar o político com aquilo a que eles chamam «natureza», se bem que o político seja feito, desde sempre, de questões de território, de solo, de recursos, de trigo, de cidade, de água. Na realidade, a política é ecológica, por definição. Esse silêncio é, tanto mais chocante, quanto todos sabemos que a globalização já não é sustentável. Age-se como se fosse possível continuar a modernização e como se a Terra pudesse suportá-la. Ora, já não há, nem espaços, nem recursos que correspondam a esse projeto político. Seriam precisas cinco ou seis Terras como a nossa. A consequência política que vemos operar no campo francês, como noutros sítios do planeta é o fechamento sobre o Estado-nação. Devolvam -nos a Polónia, diz o PiS [1]. Devolvam-nos a Itália, diz a Liga do Norte. Devolvam-nos nos a Índia, diz Modi, primeiro-ministro indiano. Devolvam nos a América, diz Trump. O raciocínio repete-se; se é verdade que já não há espaço para uma globalização para todos, então regresse cada um a sua casa. Mas a rutura mais extraordinária é o Brexit. A Inglaterra, essa pequena ilha sem recursos, que, em 1820, abandonou a ideia de alimentar o seu povo, que impôs à Europa a versão mais globalizada do mercado… decide regressar à sua condição de ilha. Em termos históricos, é uma regressão fascinante. E  também não é uma idiotice.


Acha que os partidários do Brexit têm razão?

Em termos absolutos, estão errados. Mas devemos compreender os que acabam por dizer: «Já que nos abandonaram e traíram, ao menos restituam-nos o nosso Estado-nação.»


Quem os traiu? As classes poderosas?

Uma hipótese, para a qual não possuo a prova, apenas alguns indícios: num determinado momento, algures em finais de 1970, ou no início de 1980, os membros mais astuciosos das classes dominantes compreenderam que a globalização não era ecologicamente sustentável. Mas, em vez de alterarem o modelo económico, decidiram  renunciar à ideia de um mundo comum. Daí, o lançamento de políticas desreguladoras que provocaram as desigualdades alucinantes que conhecemos hoje. Essa brutalidade económica -  multiplicada por uma brutalização de expressão política – é um modo de dizer às outras classes: «Lamentamos, boa gente,  mas renunciámos a fazer um mundo comum convosco.» Ao separar-se do mundo, a classe dominante imunizou-se contra a questão ecológica. O meu colega Dominique Pestre[2]  mostrou como, a partir de 1970, após o apelo do Clube de Roma sobre o futuro do planeta, os economistas da OCDE negaram, ou pelo menos minimizaram, a questão dos limites ecológicos.  Quanto a mim, o nível atual das desigualdades só pode compreender-se se o inscrevermos num projeto global em que se admite que não é toda a gente  que poderá desenvolver-se, um mundo em que os ricos concentram lucros desmesurados e se retiram para o seu gated community. Um artigo recente do «New Yorker»  mostra como os multimilionários se preparam para viver depois da catástrofe. Compram terras e constroem abrigos luxuosos nos três sítios que serão menos impactados pela transformação climática: a Nova-Zelândia, a Terra do Fogo e Kamchatka. Outrora, a  mania da sobrevivência era coisa de totós fardados. Hoje, são os super-ricos que abandonam o mundo. Face a isto, não é de espantar que os povos digam: «Se a globalização não é o nosso horizonte comum, dêem-nos, ao menos, um bote salva-vidas.» E o primeiro bote que aparece é o Estado-nação.


Certos políticos falariam de populismo, mas o senhor, não. Porquê?

«Populismo» é um termo acusatório, que nada descreve. É utilizado para não se refletir sobre as boas razões  pelas quais as pessoas desconfiam, para não ver os dramas por que já passaram. Pediram-se-lhes enormes sacrifícios em nome da mundialização. Foram obrigadas a abrir mão das suas proteções em troca de benefícios que nunca chegaram. A acusação de populismo é dramática. Não é absurdo querer ser protegido, o que não faz de ninguém ser de direita.


Como analisa o fenómeno Trump?

Historicamente, os Estados Unidos da América são o segundo país, atrás da Inglaterra, a terem beneficiado amplamente da globalização.  É especialmente sintomático  que eles tenham elegido Donald Trump justamente a seguir ao Brexit, dizendo ao resto do planeta:  «construímos muros, o resto do mundo não é problema nosso.» Trump é curioso porque ele recua no tempo («Make America great again.»), ao mesmo tempo que prolonga o sonho de globalização, mas unicamente à escala de um país, ou até  metade do seu país). Desde que tomou posse, de que se ocupou? Arrasou as montanhas dos Apalaches para retirar o carvão.  Esse sonho de uma globalização para um grupo restrito apoia-se na conceção da economia que já não é industrial, nem mesmo a finança, mas uma mescla de imobiliário e de telerrealidade: construir arranha-céus, viver em cenários artificiais.


Devemos ver nisso uma relação particular que Donald Trump estabelece com os factos e com a verdade científica?

É possível estabelecer um elo entre o apetite de Trump pelos «factos alternativos» e a negação da crise climática. Em 1992, Bush afirmara que o modo de vida americano não era negociável. Trump atravessa uma etapa suplementar ao recusar aceitar a responsabilidade humana nas mudanças climáticas. A minha hipótese é que não poderia sustentar nenhuma das suas promessas sem essa negação. Daí, um governo inteiramente climático-negacionista, em que o representante da Exxon é o único que tem uma vaga consciência  de que há um problema. Consequentemente, a «pós-verdade»: para imaginar que o American way of life pode desenvolver-se amanhã, como ontem, é preciso ter, digamos,  um conceito particular de verdade.


E a ideia de que o trumpismo poderia ser um fascismo?

Provavelmente, há no trumpismo uma componente fascista, no sentido corrente do termo, em torno da tentação autoritária. Mas a comparação fica-se por aqui. O fascismo era uma invenção original que conseguiu fazer crer, durante um certo tempo que se podia arcaizar e modernizar ao mesmo tempo. Os  europeus aprenderam pela própria história a entender e a criticar esse cruzamento impossível. Trump é uma invenção muito mais difícil de descodificar. De que modo atribuir a multimilionários a tarefa de proteger a classe média, ao mesmo tempo que faz desaparecer o Estado-Providência? O fascismo defendia o Estado total, Trump quer «desconstruir» o Estado federal. O absurdo da sua solução ver-se-ia, não fora o negacionismo ecológico. Num certo sentido, ele é mais perverso que o fascismo.


O que Trump propõe já existe – com Erdogan na Turquia e Putin na Rússia -, ou trata-se de algo radicalmente diferente?

Há um espírito do tempo que consiste em dizer: se os problemas que temos pela frente, tais como o clima as migrações ou a finança, com os cientistasultrapassam as competências dos Estados-nação, regressemos aos Estados-nação. È uma total contradição. Não queremos admitir que pertencemos, não a um Estado-nação, mas a uma terra comum, cujos componentes têm de ser avaliados. Mas o facto é que tudo é sustentado pela negação das ciências, negação essa que existe também na Rússia e noutros lados.


Vê alguma tradução no debate político francês?

A França continua com a clássica divisão direita-esquerda. Ora, a questão ecológica só pode ser colocada se esta clivagem for ultrapassada, sem contudo se cair num «nem direita, nem esquerda»,
(…)


Se o Estado-nação não é a escala adequada para alterar radicalmente a nossa pertença ao solo, qual é a boa?

A nossa chance é a Europa. A Europa é o lugar que abandonou os sonhos imperiais e ultrapassou o Estado-nação. Trata-se da experiência mais avançada do ponto de vista da inovação política.


Não é essa a impressão que muitas vezes dá…

Para uma instituição transnacional, Bruxelas não funciona assim tão mal. Mas, temos ainda a Europa a que pertencemos, a Europa-pátria. É sob este ângulo que devemos encarar a questão dos migrantes, por exemplo. Nós, Europeus, estamos em migração no nosso próprio solo. Por exemplo, pertenço a uma família de negociantes de vinho. As alterações climáticas obrigam-nos a procurar outros lugares para plantar as vinhas, a fazer o borgonha fora da Borgonha. A minha família migra e compra novas terras; e o mesmo se passa com muitas outras empresas pelo mundo fora. Não estou a comparar isto com a tragédia dos que atravessam o Mediterrâneo numa barcaça pneumática. Mas em ambos os casos existe o fermento de uma fraternidade necessária com os migrantes. A Europa julga-se ainda como se fosse uma fortaleza, na verdade não passa de um refúgio.


Não é esse o caminho que está a seguir…

Em termos institucionais, está muito mais avançada que o Estado-nação. Muito mais inteligente, subtil, cheia de possibilidades, de direitos, de invenções. As invenções jurídicas, a moralização da vida política, a organização da atividade científica foi ela que no-las ensinou. É preciso ser inglês para o esquecer. É verdade que a Europa não se concebe como solo. Há pouco, vi, em Florença, a primeira bandeira europeia. Com seis estrelas, duas listas horizontais – uma negra, outra azul -  significando o carvão e o aço. À saída da guerra, soubemos fazer a Europa a partir de baixo, isto é, do carvão e do aço. Hoje, é preciso refazer a Europa a partir do solo. Temos a sorte de ter ultrapassado o problema da soberania, temos uma consciência histórica da nossa responsabilidade, possuímos territórios incríveis, diversos, múltiplos, temos cidades. A pátria europeia tem um enorme poder mítico e uma rara solidez científica e ecológica. Surpreende-me imenso que os candidatos à eleição presidencial quase nunca falem disto.


Onde vê os germes da esperança?

Há exemplos, por todo o lado, desde o filme «Amanhã» até aos Amap [associações de defesa de uma agricultura camponesa, n. da red.], e outras relações comerciais de proximidade, passando pelo retorno à noção de «comum». A questão da luta de classes volta, mas territorializada. Claro que isso é frequentemente perturbada pela ideia de localidade. A globalização impôs a oposição global-local e acreditou-se que bastava relocalizar para resolver o problema. Na realidade, a nossa terra distribui o local e o global de outro modo. Mas este esforço de designação, que compete aos partidos, não foi feito. Seria necessário que o ecologismo desse lugar  ao mesmo trabalho intelectual de que beneficiou o socialismo. Isto pressupõe uma aliança com os cientistas, com os movimentos de inovação social, mas também com aqueles a quem se atribui o nome de «populismo», os que aspiram a ser protegidos. Temos necessidade de proteção – Sloterdigk diz que nos faltam «bolhas» e «envelopes» -. A globalização quis fazer-nos sair de todos os envelopes, mas isso é mortal. A esquerda não deve falar de ambiente, mas de território e de classes geo-sociais, de proteção da tradição, de transmissão, de pertença.

 

 (Bruno Latour é um antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês. Um dos fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia.)




[1] Partido conservador polaco. (n. da trad.)
[2] Historiador das ciências.  Diretor de estudos na Escola de Altos Estudos  em Ciências Sociais (n. da trad.)

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