Por que razão o clima interessa tão pouco aos nossos dirigentes? O filósofo Bruno Latour apresenta uma hipótese radical: as classes dominantes têm consciência da ameaça ecológica, mas calam-se. E preferem construir um futuro fora do mundo comum.
(Extrato da Entrevista conduzida
por Éric Aeschimann e Xavier De La Porte, para L’OBS nº 2732, 16-22 de março
de 2017)
A campanha para a eleição presidencial está ao rubro, e e a questão
climática está claramente ausente nos três candidatos mais bem classificados
nas sondagens: Marine Le Pen, François Fillon e, menorizada em Emmanuel Macron.
O senhor, que há 10 anos reflete, no âmbito das Ciências Políticas
(Sciences-Po), a necessidade de transformar o ambiente num verdadeiro desafio
político, como explica tão grande silêncio?
O erro está em falarmos de «clima». O termo
evoca algo demasiado longínquo, com o qual
não temos de nos preocupar. Seria necessário dar-lhe uma definição mais
próxima, e ligá-lo às noções de território e de solo. Os ecologistas ocupam-se
do ambiente como se se tratasse de um objeto exterior à política. Não se sentem
nada bem a casar o político com aquilo a que eles chamam «natureza», se bem que
o político seja feito, desde sempre, de questões de território, de solo, de
recursos, de trigo, de cidade, de água. Na realidade, a política é ecológica,
por definição. Esse silêncio é, tanto mais chocante, quanto todos sabemos que a
globalização já não é sustentável. Age-se como se fosse possível continuar a
modernização e como se a Terra pudesse suportá-la. Ora, já não há, nem espaços,
nem recursos que correspondam a esse projeto político. Seriam precisas cinco ou
seis Terras como a nossa. A consequência política que vemos operar no campo
francês, como noutros sítios do planeta é o fechamento sobre o Estado-nação. Devolvam
-nos a Polónia, diz o PiS [1].
Devolvam-nos a Itália, diz a Liga do Norte. Devolvam-nos nos a Índia, diz Modi,
primeiro-ministro indiano. Devolvam nos a América, diz Trump. O raciocínio
repete-se; se é verdade que já não há espaço para uma globalização para todos,
então regresse cada um a sua casa. Mas a rutura mais extraordinária é o Brexit.
A Inglaterra, essa pequena ilha sem recursos, que, em 1820, abandonou a ideia
de alimentar o seu povo, que impôs à Europa a versão mais globalizada do
mercado… decide regressar à sua condição de ilha. Em termos históricos, é uma
regressão fascinante. E também não é uma
idiotice.
Acha que os partidários do Brexit têm razão?
Em termos absolutos, estão
errados. Mas devemos compreender os que acabam por dizer: «Já que nos
abandonaram e traíram, ao menos restituam-nos o nosso Estado-nação.»
Quem os traiu? As classes poderosas?
Uma hipótese, para a qual não
possuo a prova, apenas alguns indícios: num determinado momento, algures em
finais de 1970, ou no início de 1980, os membros mais astuciosos das classes
dominantes compreenderam que a globalização não era ecologicamente sustentável.
Mas, em vez de alterarem o modelo económico, decidiram renunciar à ideia de um mundo comum. Daí, o
lançamento de políticas desreguladoras que provocaram as desigualdades
alucinantes que conhecemos hoje. Essa brutalidade económica - multiplicada por uma brutalização de
expressão política – é um modo de dizer às outras classes: «Lamentamos, boa
gente, mas renunciámos a fazer um mundo
comum convosco.» Ao separar-se do mundo, a classe dominante imunizou-se contra
a questão ecológica. O meu colega Dominique Pestre[2] mostrou como, a partir de 1970, após o apelo
do Clube de Roma sobre o futuro do planeta, os economistas da OCDE negaram, ou
pelo menos minimizaram, a questão dos limites ecológicos. Quanto a mim, o nível atual das desigualdades
só pode compreender-se se o inscrevermos num projeto global em que se admite
que não é toda a gente que poderá
desenvolver-se, um mundo em que os ricos concentram lucros desmesurados e se
retiram para o seu gated community. Um
artigo recente do «New Yorker» mostra
como os multimilionários se preparam para viver depois da catástrofe. Compram
terras e constroem abrigos luxuosos nos três sítios que serão menos impactados
pela transformação climática: a Nova-Zelândia, a Terra do Fogo e Kamchatka. Outrora,
a mania da sobrevivência era coisa de
totós fardados. Hoje, são os super-ricos que abandonam o mundo. Face a isto,
não é de espantar que os povos digam: «Se a globalização não é o nosso
horizonte comum, dêem-nos, ao menos, um bote salva-vidas.» E o primeiro bote
que aparece é o Estado-nação.
Certos políticos falariam de populismo, mas o senhor, não. Porquê?
«Populismo» é um termo
acusatório, que nada descreve. É utilizado para não se refletir sobre as boas
razões pelas quais as pessoas desconfiam,
para não ver os dramas por que já passaram. Pediram-se-lhes enormes sacrifícios
em nome da mundialização. Foram obrigadas a abrir mão das suas proteções em
troca de benefícios que nunca chegaram. A acusação de populismo é dramática.
Não é absurdo querer ser protegido, o que não faz de ninguém ser de direita.
Como analisa o fenómeno Trump?
Historicamente, os Estados Unidos
da América são o segundo país, atrás da Inglaterra, a terem beneficiado
amplamente da globalização. É
especialmente sintomático que eles
tenham elegido Donald Trump justamente a seguir ao Brexit, dizendo ao resto do
planeta: «construímos muros, o resto do
mundo não é problema nosso.» Trump é curioso porque ele recua no tempo («Make America great again.»), ao mesmo
tempo que prolonga o sonho de globalização, mas unicamente à escala de um país,
ou até metade do seu país). Desde que
tomou posse, de que se ocupou? Arrasou as montanhas dos Apalaches para retirar
o carvão. Esse sonho de uma globalização
para um grupo restrito apoia-se na conceção da economia que já não é
industrial, nem mesmo a finança, mas uma mescla de imobiliário e de
telerrealidade: construir arranha-céus, viver em cenários artificiais.
Devemos ver nisso uma relação particular que Donald Trump estabelece
com os factos e com a verdade científica?
É possível estabelecer um elo
entre o apetite de Trump pelos «factos alternativos» e a negação da crise
climática. Em 1992, Bush afirmara que o modo de vida americano não era
negociável. Trump atravessa uma etapa suplementar ao recusar aceitar a
responsabilidade humana nas mudanças climáticas. A minha hipótese é que não
poderia sustentar nenhuma das suas promessas sem essa negação. Daí, um governo
inteiramente climático-negacionista, em que o representante da Exxon é o único
que tem uma vaga consciência de que há
um problema. Consequentemente, a «pós-verdade»: para imaginar que o American way of life pode desenvolver-se
amanhã, como ontem, é preciso ter, digamos,
um conceito particular de verdade.
E a ideia de que o trumpismo poderia ser um fascismo?
Provavelmente, há no trumpismo
uma componente fascista, no sentido corrente do termo, em torno da tentação
autoritária. Mas a comparação fica-se por aqui. O fascismo era uma invenção
original que conseguiu fazer crer, durante um certo tempo que se podia arcaizar
e modernizar ao mesmo tempo. Os europeus
aprenderam pela própria história a entender e a criticar esse cruzamento
impossível. Trump é uma invenção muito mais difícil de descodificar. De que modo
atribuir a multimilionários a tarefa de proteger a classe média, ao mesmo tempo
que faz desaparecer o Estado-Providência? O fascismo defendia o Estado total,
Trump quer «desconstruir» o Estado federal. O absurdo da sua solução ver-se-ia,
não fora o negacionismo ecológico. Num certo sentido, ele é mais perverso que o
fascismo.
O que Trump propõe já existe – com Erdogan na Turquia e Putin na Rússia
-, ou trata-se de algo radicalmente diferente?
Há um espírito do tempo que
consiste em dizer: se os problemas que temos pela frente, tais como o clima as
migrações ou a finança, com os cientistasultrapassam as competências dos
Estados-nação, regressemos aos Estados-nação. È uma total contradição. Não
queremos admitir que pertencemos, não a um Estado-nação, mas a uma terra comum,
cujos componentes têm de ser avaliados. Mas o facto é que tudo é sustentado
pela negação das ciências, negação essa que existe também na Rússia e noutros
lados.
Vê alguma tradução no debate político francês?
A França continua com a clássica
divisão direita-esquerda. Ora, a questão ecológica só pode ser colocada se esta
clivagem for ultrapassada, sem contudo se cair num «nem direita, nem esquerda»,
(…)
Se o Estado-nação não é a escala adequada para alterar radicalmente a
nossa pertença ao solo, qual é a boa?
A nossa chance é a Europa. A
Europa é o lugar que abandonou os sonhos imperiais e ultrapassou o
Estado-nação. Trata-se da experiência mais avançada do ponto de vista da
inovação política.
Não é essa a impressão que muitas vezes dá…
Para uma instituição transnacional,
Bruxelas não funciona assim tão mal. Mas, temos ainda a Europa a que
pertencemos, a Europa-pátria. É sob este ângulo que devemos encarar a questão
dos migrantes, por exemplo. Nós, Europeus, estamos em migração no nosso próprio
solo. Por exemplo, pertenço a uma família de negociantes de vinho. As
alterações climáticas obrigam-nos a procurar outros lugares para plantar as
vinhas, a fazer o borgonha fora da Borgonha. A minha família migra e compra
novas terras; e o mesmo se passa com muitas outras empresas pelo mundo fora.
Não estou a comparar isto com a tragédia dos que atravessam o Mediterrâneo numa
barcaça pneumática. Mas em ambos os casos existe o fermento de uma fraternidade
necessária com os migrantes. A Europa julga-se ainda como se fosse uma
fortaleza, na verdade não passa de um refúgio.
Não é esse o caminho que está a seguir…
Em termos institucionais, está
muito mais avançada que o Estado-nação. Muito mais inteligente, subtil, cheia
de possibilidades, de direitos, de invenções. As invenções jurídicas, a
moralização da vida política, a organização da atividade científica foi ela que
no-las ensinou. É preciso ser inglês para o esquecer. É verdade que a Europa
não se concebe como solo. Há pouco, vi, em Florença, a primeira bandeira
europeia. Com seis estrelas, duas listas horizontais – uma negra, outra azul
- significando o carvão e o aço. À saída
da guerra, soubemos fazer a Europa a partir de baixo, isto é, do carvão e do
aço. Hoje, é preciso refazer a Europa a partir do solo. Temos a sorte de ter
ultrapassado o problema da soberania, temos uma consciência histórica da nossa
responsabilidade, possuímos territórios incríveis, diversos, múltiplos, temos
cidades. A pátria europeia tem um enorme poder mítico e uma rara solidez científica
e ecológica. Surpreende-me imenso que os candidatos à eleição presidencial
quase nunca falem disto.
Onde vê os germes da esperança?
Há exemplos, por todo o lado,
desde o filme «Amanhã» até aos Amap [associações
de defesa de uma agricultura camponesa, n. da red.], e outras relações
comerciais de proximidade, passando pelo retorno à noção de «comum». A questão
da luta de classes volta, mas territorializada. Claro que isso é frequentemente
perturbada pela ideia de localidade. A globalização impôs a oposição
global-local e acreditou-se que bastava relocalizar para resolver o problema.
Na realidade, a nossa terra distribui o local e o global de outro modo. Mas
este esforço de designação, que compete aos partidos, não foi feito. Seria
necessário que o ecologismo desse lugar
ao mesmo trabalho intelectual de que beneficiou o socialismo. Isto
pressupõe uma aliança com os cientistas, com os movimentos de inovação social,
mas também com aqueles a quem se atribui o nome de «populismo», os que aspiram
a ser protegidos. Temos necessidade de proteção – Sloterdigk diz que nos faltam
«bolhas» e «envelopes» -. A globalização quis fazer-nos sair de todos os
envelopes, mas isso é mortal. A esquerda não deve falar de ambiente, mas de
território e de classes geo-sociais, de proteção da tradição, de transmissão,
de pertença.
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