domingo, 1 de janeiro de 2017

Sobre o livro de Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais



ALQUIMIA FRUSTRADA

            Mergulho no livro em busca da memória colonial. Logo de início, surpreende-me o silêncio da página branca, cruzada por uma mancha tipográfica espaçada, curta, soluçante, que contrasta com o grito alegre da voz que desperta, inquisitiva.
            A morte ceifa cerce a resposta.
            Inquieta, perplexa, mas curiosa, começo a folhear o livro, em busca de algo que me prenda ao prazer do texto. O branco (indizível?), impõe-se à emoção e à ambiguidade contidas na frase: “Manuel deixou o seu coração em África” (1.), que logo de seguida são silenciadas pela enumeração prosaica que se segue. Uma outra estratégia narrativa de ocultação do não-dito, ou do interdito.
            [O mesmo Manuel que ao longo do livro haverá de, anaforicamente, reencarnar no pai, na mãe, nos amigos, nos vizinhos brancos. Na simbiose impossível de uma miscigenação que nunca existiu.].
          Parto, em busca dos sentidos desse silêncio, dos seus múltiplos sentidos e das suas variadas metamorfoses, procurando recolher os indícios e os informantes, as metáforas e as isotopias, as anisocronias, mas, também, o sentido estético-literário da polifonia de vozes que se cruzam em dialogismos surdos.
          Encaro o silêncio textual e paratextual como uma metalinguagem com tripla função, a saber:
·    Descodificador da arquitectura do livro enquanto objecto significantemente organizado e paginado;
·    Shifter literário e narratológico (coesão e coerência, de efeitos estético- ficcionais);
·    Linguagem simbólica do não-dito.


 A predominância dos espaços brancos conotam o sentido escolar de caderno, (aqui assumido como subgénero literário), registo quase sempre incompleto, lacunar, fortuito e ocasional; texto sempre inacabado, imperfeito, mnemónico, como a memória, aliás; registo silencioso, à espera de ser completado e aperfeiçoado, um escrito em devir. Conotam ainda, por metonímia, as lacunas da memória, os acontecimentos involuntários, intencionais, ou memórias em segunda-mão, de duvidoso recorte factual.
 Por outro lado, tangenciando, de passagem, a estética da recepção, refira-se o «contrato de leitura» que a autora de algum modo impõe à leitora em acção. Como vimos, logo no título, é imposto um caderno de encargos: trata-se de um caderno que apresenta as suas memórias de um tempo histórica e etariamente definido. E se, “beyond all images, he [she] follows unceasingly the call of his own being” (Gusdorf, Conditions and  limits of autobiographie.” 33), também essa labiríntica busca avoca, não uma leitora empírica, mas antes a leitora ideal, aberta ao desafio de mergulhar, sem rede, “numa segunda leitura da experiência” de vida, caldeada pelo real e pelo imaginário (cf. G., 38).  
 De facto, numa das peças do epitexto (entrevista), a autora faz questão de sublinhar a duplicidade do seu registo literário: factual e ficcional, sendo ainda que, a hermenêutica terá de se precaver com a inautenticidade (subjetividade, intencional deturpação, como estratégias assumidamente literárias) que pode ter contaminado o factual.


·    Numa perspectiva literária e narratológica (onde tem lugar o pacto de leitura que autor e leitor entre si estabelecem), o silêncio que emana do branco tipográfico vem dialogar impressivamente com o texto, esclarecendo os seus sentidos ocultos e translatos, as elipses e as anisocronias.
Note-se que, o fluir da narrativa raramente se harmoniza com a linearidade temporal; no entanto, há marcos cronológicos dotados de enorme valor simbólico e ontológico: os que coincidem com a perda: a perda da inocência (5. 31), a 1ª perda simbólica do pai (16. 62) e a perda da infância, na 1ª menstruação (21. 73). A perda arrasta consigo um silenciamento que a malha discursiva tenta, em vão, contornar, embalada numa busca, sempre perseguida, e sentido último, afinal, do Caderno de memórias coloniais. Ambas constituem a “boarderland” que oscila entre a perda e a busca, esse poroso fio da navalha onde se condensam, intransitivamente no caso vertente, o que ainda não deixou de ser e um devir suspenso nas asas do um futuro do pretérito. Uma alquimia frustrada.
Na luta por estar lá e pertencer-lhe (quando?), por querer superar-se, emular-se pela dor acre do piripiri, pela sensualidade vibrante da manga madura, pelas palavras cantantes do vizinho preto, e vorazmente sorvidas, pelo fugaz olhar trocado com os meninos nus, as mulheres abertas e os homens bêbados de vinho sujo e de servidão, foi sempre uma quimera, até ao momento em que, na solidão e na lonjura de todos os tempos, foi possível deixar brotar, livre e sofridamente, a torrente caprichosa da memória (entrev. 24).
É também silêncio-apagamento, ou seja, não-memória dolorida do outro, a sobreposição tagarela das vozes brancas das senhoras, em contraposição com o mutismo imposto aos negros serviçais. Uma imposição de não-palavra contrariada apenas pela visão inocente da filha do patrão branco (9. 41) com «alma preta».
Uma das técnicas de assunção do silêncio, enquanto metalinguagem, urde-se em torno da polifonia que irrompe das personagens fugazes, porta-vozes de outras que se escondem na penumbra (a da protagonista que,  ambiguamente, ouve e pensa).
 A diluição da voz das instâncias enunciadoras segundas, sussurrada em profundidade pela frase entrecortada, vibrante e veloz, acelera a velocidade dos discursos directo e indirecto livre, mais colados ao real e também mais polissémicos (4. 23 e 21. 73), numa vertigem sinestésica que se eleva, das vozes, dos odores, dos sabores, do arco-íris das cores, e por onde ondula um silêncio pesado e opressivo. Que ondula, afinal, pela imensidão hostil, sedutora e sensual de uma África esbulhada, retalhada e sugada por séculos de iníquos silêncios.
Na sua função de embrayeur narratológico, o silêncio transmuta-se em metadiscurso na no momento em que a pequena protagonista desperta para uma sexualidade precoce e, a todos os títulos, original: original, porque inopinada e bizarra, mas original, ainda e sobretudo, porque originalmente pecaminosa, impura e dolorosa. A função metadiscursiva do silêncio manifesta-se no não-dito e no interdito paternos (cf. The woman worrier), mas também (como a moral então vigente, impunha), no total silenciamento da figura materna.

Numa leitura simbólica, a cor branca conota totalidade, mas também ausência e silêncio. No universo ficcional, a totalidade toma várias cambiantes e materializa o pai que, por seu lado, personifica o mito do colonizador, ungido pelo poder delegado da pátria e de Deus, indo, qual Átila, vencer as trevas e espalhar a luz no coração do preto. O que era o preto? Nem gente, nem animal, errando ao sabor de um primitivismo obsceno, posto no caminho do branco para ser domado (4. 24). (Cf. Father and Son: [ my father] “regarded himself as the faithful steward of a Master who might return at any moment, and who would require to find everything ready for his convenience.” p. 247).
Nessa totalidade, cabe ainda o perfil bem delineado de uma entidade paterna absoluta e inteira, com quem a narradora há-de sempre ter uma relação ambígua e complexa de amor-ódio, dualidade axiológica, entendida aqui à luz da teoria empedocliana, na sua aplicação à dialéctica relacional dos quatro elementos: “os quatro elementos são movidos pelas forças do amor e do ódio: no amor absoluto, eles formam uma unidade homogénea, enquanto o ódio os separa. Quando duas forças entram em conflito, a mistura dos elementos faz surgir as coisas concretas”. (cf. Camões e Edgar Morin) (2. 11)

 A ausência e o silêncio prefiguram-se dolorosamente no olhar de uma mulher-acabada-de-nascer, dilacerada entre o discurso oficial, único, e uma realidade premonitoriamente conflitual e violenta, para a qual procura um sentido (4. 28). O olhar, sôfrego e silente, interroga os objetos e os bibelots, os mainatas e as vozes, na busca de uma linguagem não-órfã, não-intransitiva, capaz de sacudir a modorra assustadiça das conversas dos adultos: “Que sim, que estava a ouvir”, enquanto a casca de coco rangia os dentes de um ódio multi-secular, preparando um cenário outro de que essa mulher amputada, nem sequer figurante seria.

                                                           
           
           
           


             

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