Sobre o livro de Isabela
Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais
ALQUIMIA FRUSTRADA
Mergulho
no livro em busca da memória colonial. Logo de início, surpreende-me o silêncio
da página branca, cruzada por uma mancha tipográfica espaçada, curta, soluçante,
que contrasta com o grito alegre da voz que desperta, inquisitiva.
A
morte ceifa cerce a resposta.
Inquieta,
perplexa, mas curiosa, começo a folhear o livro, em busca de algo que me prenda
ao prazer do texto. O branco (indizível?), impõe-se à emoção e à ambiguidade
contidas na frase: “Manuel deixou o seu coração em África” (1.), que logo de
seguida são silenciadas pela enumeração prosaica que se segue. Uma outra
estratégia narrativa de ocultação do não-dito, ou do interdito.
[O
mesmo Manuel que ao longo do livro haverá de, anaforicamente, reencarnar no
pai, na mãe, nos amigos, nos vizinhos brancos. Na simbiose impossível de uma
miscigenação que nunca existiu.].
Parto,
em busca dos sentidos desse silêncio, dos seus múltiplos sentidos e das suas
variadas metamorfoses, procurando recolher os indícios e os informantes, as
metáforas e as isotopias, as anisocronias, mas, também, o sentido estético-literário
da polifonia de vozes que se cruzam em dialogismos surdos.
Encaro
o silêncio textual e paratextual como uma metalinguagem com tripla função, a
saber:
·
Descodificador
da arquitectura do livro enquanto objecto significantemente organizado e
paginado;
·
Shifter
literário e narratológico (coesão e coerência, de efeitos estético-
ficcionais);
·
Linguagem
simbólica do não-dito.
A predominância dos espaços brancos conotam o
sentido escolar de caderno, (aqui
assumido como subgénero literário), registo quase sempre incompleto, lacunar,
fortuito e ocasional; texto sempre inacabado, imperfeito, mnemónico, como a
memória, aliás; registo silencioso, à espera de ser completado e aperfeiçoado,
um escrito em devir. Conotam ainda, por metonímia, as lacunas da memória, os
acontecimentos involuntários, intencionais, ou memórias em segunda-mão, de
duvidoso recorte factual.
Por outro lado, tangenciando, de passagem, a
estética da recepção, refira-se o «contrato de leitura» que a autora de algum
modo impõe à leitora em acção. Como vimos, logo no título, é imposto um caderno
de encargos: trata-se de um caderno
que apresenta as suas memórias de um tempo histórica e etariamente definido. E
se, “beyond all images, he [she] follows unceasingly the call of his own being”
(Gusdorf, Conditions and limits of autobiographie.” 33), também essa labiríntica busca
avoca, não uma leitora empírica, mas antes a leitora ideal, aberta ao desafio
de mergulhar, sem rede, “numa segunda leitura da experiência” de vida, caldeada
pelo real e pelo imaginário (cf. G., 38).
De facto, numa das peças do epitexto
(entrevista), a autora faz questão de sublinhar a duplicidade do seu registo
literário: factual e ficcional, sendo ainda que, a hermenêutica terá de se
precaver com a inautenticidade (subjetividade, intencional deturpação, como
estratégias assumidamente literárias) que pode ter contaminado o factual.
·
Numa
perspectiva literária e narratológica (onde tem lugar o pacto de leitura que
autor e leitor entre si estabelecem), o silêncio que emana do branco
tipográfico vem dialogar impressivamente com o texto, esclarecendo os seus
sentidos ocultos e translatos, as elipses e as anisocronias.
Note-se que, o
fluir da narrativa raramente se harmoniza com a linearidade temporal; no entanto,
há marcos cronológicos dotados de enorme valor simbólico e ontológico: os que
coincidem com a perda: a perda da
inocência (5. 31), a 1ª perda simbólica do pai (16. 62) e a perda da infância,
na 1ª menstruação (21. 73). A perda arrasta consigo um silenciamento que a
malha discursiva tenta, em vão, contornar, embalada numa busca, sempre perseguida,
e sentido último, afinal, do Caderno de
memórias coloniais. Ambas constituem a “boarderland” que oscila entre a
perda e a busca, esse poroso fio da navalha onde se condensam,
intransitivamente no caso vertente, o que ainda não deixou de ser e um devir
suspenso nas asas do um futuro do pretérito. Uma alquimia frustrada.
Na luta por estar
lá e pertencer-lhe (quando?), por querer superar-se, emular-se pela dor acre do
piripiri, pela sensualidade vibrante da manga madura, pelas palavras cantantes
do vizinho preto, e vorazmente sorvidas, pelo fugaz olhar trocado com os
meninos nus, as mulheres abertas e os homens bêbados de vinho sujo e de
servidão, foi sempre uma quimera, até ao momento em que, na solidão e na
lonjura de todos os tempos, foi possível deixar brotar, livre e sofridamente, a
torrente caprichosa da memória (entrev. 24).
É também silêncio-apagamento,
ou seja, não-memória dolorida do outro, a sobreposição tagarela das vozes
brancas das senhoras, em contraposição com o mutismo imposto aos negros
serviçais. Uma imposição de não-palavra contrariada apenas pela visão inocente
da filha do patrão branco (9. 41) com «alma preta».
Uma das
técnicas de assunção do silêncio, enquanto metalinguagem, urde-se em torno da
polifonia que irrompe das personagens fugazes, porta-vozes de outras que se
escondem na penumbra (a da protagonista que,
ambiguamente, ouve e pensa).
A diluição da voz das instâncias enunciadoras segundas,
sussurrada em profundidade pela frase entrecortada, vibrante e veloz, acelera a
velocidade dos discursos directo e indirecto livre, mais colados ao real e
também mais polissémicos (4. 23 e 21. 73), numa vertigem sinestésica que se
eleva, das vozes, dos odores, dos sabores, do arco-íris das cores, e por onde
ondula um silêncio pesado e opressivo. Que ondula, afinal, pela imensidão
hostil, sedutora e sensual de uma África esbulhada, retalhada e sugada por
séculos de iníquos silêncios.
Na sua função
de embrayeur narratológico, o silêncio transmuta-se em metadiscurso na no
momento em que a pequena protagonista desperta para uma sexualidade precoce e,
a todos os títulos, original: original, porque inopinada e bizarra, mas
original, ainda e sobretudo, porque originalmente pecaminosa, impura e
dolorosa. A função metadiscursiva do silêncio manifesta-se no não-dito e no
interdito paternos (cf. The woman worrier),
mas também (como a moral então vigente, impunha), no total silenciamento da
figura materna.
Numa leitura
simbólica, a cor branca conota totalidade, mas também ausência e silêncio. No
universo ficcional, a totalidade toma várias cambiantes e materializa o pai
que, por seu lado, personifica o mito do colonizador, ungido pelo poder delegado
da pátria e de Deus, indo, qual Átila, vencer as trevas e espalhar a luz no
coração do preto. O que era o preto? Nem gente, nem animal, errando ao sabor de
um primitivismo obsceno, posto no caminho do branco para ser domado (4. 24). (Cf. Father and Son: [ my father] “regarded
himself as the faithful steward of a Master who might return at any moment, and
who would require to find everything ready for his convenience.” p. 247).
Nessa
totalidade, cabe ainda o perfil bem delineado de uma entidade paterna absoluta
e inteira, com quem a narradora há-de sempre ter uma relação ambígua e complexa
de amor-ódio, dualidade axiológica, entendida aqui à luz da teoria
empedocliana, na sua aplicação à dialéctica relacional dos quatro elementos: “os
quatro elementos são movidos pelas forças do amor e do ódio: no amor
absoluto, eles formam uma unidade homogénea, enquanto o ódio os separa. Quando
duas forças entram em conflito, a mistura dos elementos faz surgir as coisas
concretas”. (cf. Camões e Edgar Morin) (2. 11)
A ausência e o silêncio prefiguram-se dolorosamente
no olhar de uma mulher-acabada-de-nascer, dilacerada entre o discurso oficial,
único, e uma realidade premonitoriamente conflitual e violenta, para a qual procura
um sentido (4. 28). O olhar, sôfrego e silente, interroga os objetos e os
bibelots, os mainatas e as vozes, na busca de uma linguagem não-órfã,
não-intransitiva, capaz de sacudir a modorra assustadiça das conversas dos
adultos: “Que sim, que estava a ouvir”, enquanto a casca de coco rangia os
dentes de um ódio multi-secular, preparando um cenário outro de que essa mulher
amputada, nem sequer figurante seria.
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